São Paulo, sexta-feira, 31 de agosto de 2001

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ARTIGO

A síndrome do acossado


MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Aquilo que o público espera de um escritor, de um diretor de cinema, de um autor de novela de TV pode ser resumido em uma única palavra: "Surpreenda-nos".
A surpresa é o tempero da vida, é o antídoto contra a rotina, o mais das vezes pesada, em que vivem milhões de pessoas.
Fernando Dutra Pinto surpreendeu-nos. Não foi a surpresa lúdica de um filme ou de um romance; não, foi uma surpresa assustadora, gerada por um foragido caçado pela polícia e em cujo rastro já havia dois mortos. Uma história de horror, interrompida, em um momento, por um estranho interlúdio que dava a idéia de um final feliz: Silvio e Patrícia felizes, sorridentes, ela atribuindo à crença em Deus sua salvação. Parecia ficção, mas não era ficção, como logo se descobriu, e sim brutal realidade. A realidade da violência brasileira.
Mas essa realidade ainda admitiria o insólito, correndo à conta daquilo que poderíamos chamar de síndrome do acossado. O perseguido recorre a qualquer coisa para escapar; recorre, inclusive e principalmente, ao inesperado. Por exemplo: sempre se disse que o criminoso volta ao local do crime -uma coisa, portanto, que o criminoso deveria evitar. E Fernando Dutra Pinto voltou à casa de Silvio Santos. Porque o acossado vive uma situação diferente, raciocina diferente, e às vezes seu raciocínio, governado por obscuros mecanismos psicológicos, escapa aos padrões habituais.
Em fuga, uma lagartixa deixará a cauda, coleando, diante do espantado perseguidor; uma ratazana, ao contrário, poderá atacar com surpreendente ferocidade. Ou seja: em animais ou em seres humanos, a condição de acossado significa imprevisibilidade. Por que decidiu Dutra Pinto regressar à casa de Silvio Santos? Movia-o o desespero ou uma notável intuição? Não importa. O certo é que desnorteou seus perseguidores e criou dificuldades adicionais à polícia. Os negociadores enviados ao local sabiam que estariam diante de uma figura insólita.
O fato é que a negociação deu resultado. O que, entre parênteses, corresponde a uma tradição brasileira. Somos um país que busca o consenso. O que nem sempre é bom: quando o consenso serve para maquiar (e esta também é uma palavra muito usada entre nós, ao menos no momento) um conflito, representa apenas um engodo histórico, ilusório, aliás. Mas quando, como no caso, evita problemas maiores, representa uma solução. É o antídoto que a racionalidade nos dá contra a síndrome do acossado. E funcionou. Bom seria se a negociação pudesse resolver os nossos macroproblemas. Isso, porém, já seria pedir demais.


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