São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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DANUZA LEÃO

Conselhos para alcançar a felicidade

Estou chegando à conclusão de que a maior sabedoria é viver desligada.
Por viver desligada, leia-se não prestar atenção às coisas, aliás, a quase nada. Tem uma poeirinha na estante? Finja que não viu; no lugar de ficar ligando para o estofador dizendo que está esperando as almofadas na quinta, como ele havia prometido, finja que esqueceu da promessa. Assim a vida fica mais leve, e sua cabeça vai esquentar menos.
Nas coisas mais sérias, seja ainda mais distraída. Se seu marido não lembrou do seu aniversário, tanto melhor: se você também não lembrasse, seria um ano a menos que teria na vida, e quando sua filha aparecer com os olhos vermelhos e morta de fome às 3h da manhã, ofereça-se para fazer um pão de queijo sem nem por sombras imaginar que ela poderia estar fazendo outra coisa além de estudar.
Ah, mas assim não é possível viver, é preciso tomar conhecimento das coisas que acontecem, pois só assim a vida existe? Quem disse isso? E da sua vida, quem cuida?
Se desligar significa ser profundamente egoísta e só pensar nos seus próprios problemas, seus problemas personalíssimos, aqueles que não dependem de ninguém para serem resolvidos.
O livro que está lendo, por exemplo; é preciso mergulhar nele de tal forma que, se a máquina de lavar der defeito e alagar toda a área de serviço, você não esteja nem aí. Quando seu filho adolescente chegar e fizer um escândalo ao ver a casa quase inundada, diga apenas que estava tão absorvida na leitura que não viu. Ele vai fazer um pequeno escândalo, claro, mas quando perceber que você não vai tomar nenhuma providência, vai se virar. Ou falando com o porteiro, ou ligando para o pai ou aprendendo, enfim, que existem as páginas amarelas, e que com elas qualquer pessoa de mediana inteligência resolve qualquer problema.
Quem conseguir ser realmente desligada desde bem cedo descobre que a felicidade existe; e quem não conseguir essa benção naturalmente, pode -e deve- fingir que não vê as coisas que estão acontecendo e que não só nos aborrecem como podem nos fazer muito infelizes.
Seu namorado é, declaradamente, um galinha. Tudo bem, todos os homens são. Mas existem galinhas e galinhas, e certas gentilezas feitas com algumas mulheres ferem mais do que com outras. Galinhar com uma estranha é uma coisa, com nossa maior amiga é outra. E o que fazer, na hora em que se tem certeza -e coração de mulher não se engana jamais, só exagera às vezes- do que está acontecendo?
Se fingir de cega. Não ver nada, não entender nada, e continuar tratando os dois -a piranha, inclusive- como se nada fosse. Mas piranha, ela, como assim? Porque nenhum homem paquera mulher nenhuma se não vir aceso na testa dela aquele sinal verde, ou pelo menos amarelo.
Melhor ainda: se finja de idiota. Idiota é aquela que tem uma névoa diante dos olhos para tudo que possa incomodá-la, e nada mais cômodo para os homens do que ter uma mulher idiota como companheira. Uma mulher que não discute a relação, que acredita em tudo o que ele diz, que não consegue enxergar a realidade. E o que é a realidade, afinal?
Para ela, é uma felicidade achar que a vida é cor-de-rosa, que os filhos são uns anjos, que a vida não tem problemas e que ganhou na loteria quando casou com aquele cafajeste.
É fácil ser feliz. É só abrir mão de ser inteligente, perspicaz, sensível e atenta, é só fingir que não vê nada do que se passa em volta e passar por boba diante da humanidade.
Ah, e importantíssimo: se recusar, sempre, a ouvir qualquer verdade que queiram te contar -para seu bem, é claro.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br

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