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Bichos

SÍLVIA CORRÊA correa-silvia@uol.com.br

Carência que coça

Sozinhos e entediados, os animais das grandes cidades desenvolvem cada vez mais transtornos

No começo, pareciam lambidinhas rotineiras, sem maiores consequências. Entre uma brincadeira e outra, lá estava Bebê lambendo a pata direita. Deixei... afinal, todo cachorro tem direito às suas manias.

Mas a mania foi adiante: virou compulsão. No local da lambedura formou-se um calo. Depois, uma pequena ferida que, com o tempo, deixou de ser pequena.

Com a lesão ao alcance da boca, não há muitas alternativas até que se descubra a origem do problema: a saída é adotar o colar elizabetano -aquele que parece um abajur e impede o animal de mordiscar o corpo.

Com alguns dias de colar e uma pomada cicatrizante, a ferida fechou. Aí, tirei o colar e Bebê voltou a lamber compulsivamente a pata. As tentativas já se arrastam por alguns meses, o que reforça as suspeitas sobre uma doença de nome difícil, mas cada vez mais comum nas clínicas veterinárias: dermatite por lambedura psicogênica.

É um distúrbio de comportamento -o animal não se lambe por um incômodo real causado por pulgas, carrapatos, formações ósseas ou alergias, mas, sim, por uma alteração psicológica.

A compulsão -um comportamento repetitivo e sem função- pode ser desencadeada por ansiedade ou estresse decorrentes de quebras da rotina do animal (nascimentos, mortes, separações e mudanças de casa). A explicação mais comum, no entanto, está na vida corrida dos donos: os animais ficam sozinhos por períodos cada vez mais longos, recebem cada vez menos atenção e ficam cada vez mais entediados.

Para qualquer proprietário, um diagnóstico como esse tem efeito de um tapa na cara: uma doença decorrente de falta de atenção... E comigo não tem sido diferente.

Bebê é uma golden retriever que achei na avenida Morumbi, numa noite de chuva. Parei apenas para tirá-la do meio da rua, mas seu jeito meigo me impediu de deixá-la para trás. Espalhei faixas pelo bairro, mas o dono, felizmente, nunca apareceu.

Lá se vão seis anos desde aquela noite chuvosa. Em casa, Bebê foi imediatamente aceita pelos demais e nunca se envolveu em encrenca. Tem um comportamento meio alienado: fica horas de barriga para cima, no pátio, numa espécie de transe solar.

A compulsão de Bebê começou logo depois que nos mudamos. E a casa nova foi escolhida exatamente porque oferece mais espaço para os cachorros correrem à vontade.

Além do terreno onde hoje cavam enormes buracos, eles têm brinquedos, ossinhos à vontade e companhia o dia todo. Não durmo sem dar boa noite a cada um e colocá-los nas devidas caminhas. Aqui, do meu ponto de vista humano, achei que era suficiente. Mas, pelo visto, achei errado.

O desafio agora é reverter a compulsão de Bebê. Desenvolvidas em situações de tédio ou estresse, muitas não diminuem quando oferecemos um ambiente melhor ao animal e viram uma espécie de cicatriz comportamental. Nesse caso, o tratamento tem de ser feito à base de ansiolíticos mesmo -medicamentos do tipo Prozac. Isso deve mudar o comportamento de Bebê. Depois... depois talvez seja hora de mudar o meu.

AMANHÃ EM COTIDIANO
Jairo Marques

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