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Francisco Daudt

Flap e eu

Ele é igualzinho a gente: usa de todos os artifícios de sua inteligência -que não é pouca- para obter amor

Flap é o nome do jack russel terrier da minha filha, que veio morar comigo por motivos alheios à minha vontade (o cão, não minha filha). Quem viu o filme "O Artista" conhece a raça. É lindo, hiperativo, e para um interessado nos programas que a natureza insere em nós, mamíferos, para influenciar nosso comportamento, tem sido uma constante lição.

Ele é igualzinho a gente: usa de todos os artifícios de sua inteligência (que não é pouca) para obter amor, prestígio, sustento e proeminência no pedaço. Seu comportamento se parece com o de uma criança humana, ainda que já adulto.

Deixado só no pátio, faz manha, chora baixinho aparentando grande sofrimento, desdenha da comida e da água que tem disponíveis, cola-se à porta da cozinha para que seus lamentos sejam bem audíveis.

Se, depois de algum tempo, percebe que sua manobra de nos manipular pela culpa não deu resultados, come, bebe, brinca um pouco sozinho, busca um canto ensolarado neste maio de céu deslumbrante e de uma fresca que beira o frio. Ali se enrodilha para uma soneca.

Se alguém entra no pátio, levanta a cabeça para avaliar em que posição o humano se coloca na sua escala pessoal de importância. Se é de baixa, volta a dormir. Se é de alta, levanta-se animado e vem pedir carinho. Se é um estranho (entregador do supermercado, p.e.), desanda a latir, irritado com aquela invasão num território que julga seu.

O pedido de carinho também muda de acordo com quem chega. Minha filha, que o mima, é recebida aos saltos esfuziantes, para que ela o pegue no colo. Já eu, a autoridade máxima da casa que não lhe dá muita bola, sou recebido com uma aproximação respeitosa. Ele vem andando, chega perto de mim e se senta, pois sabe que é a única maneira de me agradar ao ponto de ser afagado atrás das orelhas, e só.

Mas seu comportamento para comigo varia de acordo com circunstâncias. Minha filha estava num trabalho que a obrigava a chegar além das 20h em casa. Ele ficava daquele jeito no pátio, e quando eu terminava de trabalhar (às 19h20), ia até lá para dar-lhe acesso ao quarto da "mãe". Abria a porta da cozinha, chamava-o, e ele vinha com postura humilde, até que eu lhe dissesse "Para o quarto da mamãe", quando ele arremetia escada acima a toda. Entrava debaixo da cama dela e eu fechava a porta do quarto. Era a nossa rotina.

Mas minha filha saiu do emprego e está "free-lancer" de casa, tendo muito mais tempo para mimá-lo, para brincar com ele. Não é que o bicho, quando perto dela, deu de se mostrar ciumento, latindo para mim quando eu a abraço?!

Combinei com ela que era inadmissível aquele desrespeito, e que qualquer hostilidade a mim dirigida deveria ter como resposta sua imediata expulsão do nosso convívio, ainda que por dois minutos. Pois ele voltava quieto, e tolerante com o meu chamego com ela. Impressionante.

Ainda não ligo para cães, mas tenho que agradecer ao Flap a comprovação de que nós não somos uma espécie em separado do reino animal. Temos instintos, e nossa diferença é de quantidade, não de qualidade.

fdaudt2@gmail.com

AMANHÃ EM COTIDIANO
Antonio Prata

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