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OPINIÃO ECONÔMICA
A lúgubre ciência
RUBENS RICUPERO
O feio adjetivo que se aplica
à demografia na Inglaterra
provém de uma falsa profecia.
Malthus, um dos primeiros e raros economistas a valorizar a população como variável fundamental da economia, enganou-se
ao prever que os seres humanos
cresceriam em número mais depressa que a capacidade de alimentá-los. Desde então, os economistas reverteram em geral à tradição de negligenciar a demografia ou a tratá-la como parte de
um imutável pano de fundo, como o clima ou a geologia.
Foi preciso recorrer a gente de
outras disciplinas, quase sempre
de mais aguda consciência da historicidade de todo o conhecimento humano, para compreender
que a população não tem a estabilidade da astronomia. Fernand
Braudel conferia às tendências
demográficas posição central na
determinação dos ciclos de longa
duração, às vezes seculares. Em
1976, coube a um historiador e demógrafo, Emmanuel Todd, a primazia de anunciar, em "La Chute
Finale", a "decomposição da esfera soviética", na base da baixa da
natalidade, combinada a outros
indicadores.
A centralidade da demografia
ganhou atualidade nesta nossa
época, na qual a transição demográfica acelerou-se tanto que
obriga a corrigir previsões a intervalos cada vez menores. Dez anos
atrás, por exemplo, a Divisão de
População da ONU tinha estimado que, em 2050, a população
mundial atingiria 9,8 bilhões. A
projeção caiu agora a 8,9 bilhões,
quase uma Índia a menos. Explicação: a taxa de fertilidade desabou muito mais rápido que se
imaginava, e o impacto da Aids
na explosão da mortalidade na
África é bem pior do que se temia.
Calcula-se que sejamos hoje cerca de 6,4 bilhões no planeta e que
aumentemos à taxa de 1,2%,
mais ou menos 77 milhões a cada
ano. No próximo meio século,
metade do crescimento da população virá de oito países: Índia
(21%), Paquistão, Nigéria, EUA,
China, Bangladesh, Etiópia e
Congo. Será uma surpresa para
os brasileiros não ver na lista o
nome do Brasil, que ingressou no
século 20 com pouco mais de 17
milhões e saiu com 170 milhões.
Em compensação, na Índia, a população cresce, em uma só semana, mais do que a da União Européia inteira em um ano.
Quase toda a expansão esperada se dará em países pobres. A
única exceção notável é os Estados Unidos, país no qual o relativo dinamismo demográfico continuará a ser componente essencial
do poderio econômico e militar. A
excepcionalidade americana, em
comparação com as outras sociedades abastadas, se origina de
uma taxa de fertilidade mais elevada, reforçada por imigração
também maior. Aliás, no fundo, o
primeiro fator se resume ao segundo, pois são os imigrantes que
mantêm alta a fertilidade ianque
até que seus descendentes aos
poucos comecem a adotar o mesmo comportamento reprodutivo
do resto da população.
A fertilidade, isto é, a média de
filhos de uma mulher em seu período de reprodução, mergulhou,
em quase todos os países ricos, a
níveis bastante inferiores ao mínimo indispensável para repor a
população, evitando que ela decresça (em torno de 2,1). Na Europa, só a paupérrima Albânia está
acima desse mínimo. Os demais
oscilam entre 1,9 para a Irlanda e
1,15 para a Espanha. O curioso é
que o declínio da fertilidade é fenômeno menos grave nos prósperos (França, Noruega, Dinamarca) do que nas nações mais modestas do Mediterrâneo (Grécia,
Itália, Portugal e Espanha).
A conseqüência é que, em 50
anos, muitos desses povos vão encolher fisicamente. Se o comportamento demográfico não se alterar, em 2050, o Japão terá população 14% menor que hoje, a Itália,
22%, a Rússia, 30%, e a Estônia
sofrerá autêntica catástrofe populacional, com redução de 52%!
Estima a Comissão Européia que,
devido a isso, a taxa de crescimento econômico potencial para
a União Européia poderá cair de
2% a 2,25% por ano a 1,25%, com
redução igualmente apreciável
na produtividade.
Exemplo dramático é o da Itália, durante mais de um século
um dos países clássicos da emigração. O "Corriere della Sera"
calculou que, entre abril e junho
de 2001, houve, no país, mais nascimentos de empresas (102 por
dia) que de bebês (96)! O povo italiano foi o primeiro na Europa a
ver o número de pessoas de mais
de 65 anos (17%) exceder o de
crianças de menos de 15 (13%). O
Triveneto, a macrorregião que
compreende o Veneto, o Friuli, o
Trentino-Alto Adige, isto é, o nordeste italiano, considerada a região cuja prosperidade cresce
mais em toda a Europa, assiste
com apreensão à tensão crescente
entre dinamismo econômico e declínio demográfico.
Zona de forte vocação industrial, onde a indústria representa
ainda 40% ou mais do emprego e
da produção, o nordeste italiano
irá sofrer, nos próximos 20 anos, o
choque simultâneo de 20 mil aposentados a mais e 30 mil trabalhadores a menos por ano!
Em contraste com o panorama
melancólico europeu, os EUA
atingiram em 2000 cerca de 285
milhões de habitantes, um salto
de 13,2% na década de 1990, a de
maior crescimento em termos absolutos de toda a história. Na
mesma década, mais de 13 milhões de imigrantes legais ou ilegais ingressaram nos EUA.
Um dado significativo é que
metade dos que engrossaram a
força de trabalho nesses anos era
de imigrantes. Considerando apenas os trabalhadores homens, a
proporção é de oito em cada dez
dos novos empregos. Em 2050, os
americanos passarão a ser mais
de 400 milhões, ao passo que os
europeus se reduzirão de 726 milhões a 632 milhões. Nessa hipótese, receia a Comissão Européia
que a proporção da Europa no
bolo da produção mundial poderá desabar de 18% a 10%, enquanto a dos EUA aumentaria de
23% a 26%.
Outro estudo, do Instituto Francês de Relações Internacionais,
utilizando dados um pouco distintos, chega a conclusões semelhantes. O peso europeu na produção global passaria de 23%, em
2000, a 12%, em 2050, uma divisão por dois do poderio econômico em meio século! Ao longo desse
período, os EUA conservariam
aproximadamente a mesma posição (entre 25% e 23%) e a Ásia
saltaria de 35% a 45%.
À luz dessas tendência, é fácil
entender por que muitos europeus consideram a demografia
como uma ciência lúgubre. Caso
não haja mudanças rápidas no
horizonte, pode-se ainda falar seriamente de uma Europa unida
contribuindo à emergência de um
mundo cada vez mais multipolar
diante dos EUA?
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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