São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

A síndrome de Pinóquio na energia

ADRIANO PIRES

Algumas declarações e acontecimentos ocorridos em 2003 e no início de 2004 demonstram que as autoridades do setor de energia parecem estar acometidas da síndrome de Pinóquio. Como todos sabem, Pinóquio possuía um desvio de personalidade que era o de nunca contar a verdade. Com muita ingenuidade e charme, Pinóquio não tinha coragem para assumir suas idéias e, conseqüentemente, perdia a confiança de todos aqueles que o cercavam.
A atual equipe energética, sem o charme e menos ingenuidade que Pinóquio, tenta enganar o mercado e mesmo a sociedade com um discurso de que estaria promovendo mudanças que irão assegurar os investimentos necessários de forma a retomar o crescimento sustentado.
No setor elétrico, no início de 2003, a equipe do MME (Ministério de Minas e Energia) garantia que o modelo proposto durante a campanha presidencial tinha sido abandonado e que, portanto, mecanismos de mercado e opiniões dos agentes seriam considerados na elaboração do novo modelo.
A primeira surpresa veio em julho de 2003, quando da divulgação de um documento preliminar. Logo, verificou-se que a vertente "Lula light" não tinha contaminado a equipe do MME. Entretanto, diante das críticas do mercado, da sociedade e até mesmo de outras áreas do governo, o MME voltou a afirmar que a versão final do modelo levaria em conta todas as sugestões apresentadas. Isso porque um dos objetivos principais do novo modelo seria a atração de capitais privados. Qual não foi a surpresa quando, no final do ano passado, o MME encaminhou ao presidente da República duas MPs (medidas provisórias) que propunham um modelo centralizador e estatizante. Na sua essência, as idéias contidas nas duas MPs são semelhantes às que circularam no período das eleições presidenciais.
Um outro acontecimento, que obrigou o governo a rever algumas de suas posições, é a recente crise de energia do Nordeste. É bom lembrar que, durante a campanha presidencial, e mesmo depois da posse, algumas das atuais autoridades do setor propuseram quebra de contratos tanto com as térmicas emergenciais quanto com as do PPT. Até alguns professores que atualmente exercem cargos de governo sugeriram a denúncia dos contratos ao Ministério Público.
Em razão dessas declarações, a entrada em operação das térmicas emergenciais foi adiada ao máximo, evidentemente com custos para os consumidores. Porém, com o agravamento da crise, o governo "mordeu a língua" e na segunda semana de janeiro foram ligadas mais de 30 térmicas, ao custo de R$ 230 a R$ 430 por MWh.
No setor de petróleo existem duas histórias. A primeira é a falta de transparência da política de preços da gasolina, diesel e GLP. Durante todo o ano de 2003, a Petrobras afirmou que seus preços eram iguais ou menores em relação aos do mercado internacional. Porém, quando comparamos os preços da Petrobras com os do golfo Americano, verificamos que os preços internos estiveram quase sempre acima dos externos. Isso justifica, em parte, o resultado apresentado pelo segmento de abastecimento da Petrobras. Em 2003, esse segmento, responsável pela venda de derivados, teve uma participação de cerca de 30% no lucro total da empresa, enquanto em 2002 foi de apenas 15%.
A segunda história está ligada à licitação dos blocos de petróleo e gás natural. Em julho do ano passado, nas vésperas do leilão das áreas, o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) publicou a resolução nš 08. A resolução contém dois pontos que, aparentemente, passaram desapercebidos do mercado. O primeiro é retirar, na prática, o poder concedente da ANP. O segundo foi criar dois conceitos dignos do intervencionismo do atual governo: a relação ideal (sic) entre reservas e a produção e o volume adequado (sic) de reservas do país. Na realidade, essa resolução fortalece o MME e deixa subentendido que, atingida a auto-suficiência, não haveria mais a necessidade de novas licitações.
No campo da regulação, o governo passou o ano alternando um discurso ora a favor, ora contra a autonomia e a independência das agências. Porém, no final de 2003, o governo parece ter optado pela construção de um marco regulatório em que as agências passam a ter seu poder reduzido e suas decisões são politizadas. Isso fica claro com a indicação de um político com posicionamento contrário à abertura do setor do petróleo e gás natural para a diretoria da ANP e a demissão do presidente da Anatel pelo fato de ter discordado do ministro das Comunicações.
Por mais competente que o governo seja na arte de esconder suas verdadeiras intenções, não é possível enganar a todos o tempo inteiro.
Nesse sentido, é uma pena que, depois de tanto tempo e trabalho para conseguirmos alcançar a estabilidade macroeconômica, o governo deixe escapar a oportunidade ímpar de atrair investimentos privados para o setor de infra-estrutura.
Em 2004, o governo precisa assumir uma atitude compatível com as nossas reais necessidades. Isso significa separar a figura do Estado-empresário do Estado-regulador, estabelecer um marco regulatório e tributário que incentive o investimento privado e estimular a competição. Caso contrário, estaremos promovendo um desmanche do equilíbrio macroeconômico.


Adriano Pires Rodrigues, 46, economista, é doutor em economia industrial pela Universidade Paris 13, diretor do CBIE (Centro Brasileiro de Infra-Estrutura) e professor da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Hoje, excepcionalmente, a coluna de Maria da Conceição Tavares não é publicada.


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