São Paulo, domingo, 01 de fevereiro de 2004

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LUÍS NASSIF

O rei do violão

Como avaliar a importância de um violonista? Há autores que criam história desenvolvendo novas escolas musicais. O Brasil tem João Pernambuco, Garoto e Baden Powell, sem contar, obviamente, Villa-Lobos.
Há aqueles dotados de fina técnica, como Paulinho Nogueira, Turíbio Santos e, agora, Fábio Zanon. Há violonistas que desempenharam papel histórico relevante na divulgação do violão, mesmo não sendo virtuoses. Como Dilermando Reis, que ajudou a popularizar o violão no Brasil, e Laurindo de Almeida e Bola Sete, ajudando a popularizar o violão brasileiro nos Estados Unidos.
E há os virtuoses.
Nesse campo, além do próprio Baden, o violão brasileiro e mundial tem um conjunto pequeno de estrelas. Mas junte Raphael Rabello e Yamandú Costa. Adicione técnica e haverá os irmãos Abreu e o Duo Assad -Sérgio, o compositor, arranjador e exímio violonista, e Odair, o virtuose. Agora, somem os dois grupos e haverá o maior virtuose da história do violão brasileiro: Natalino Moreira Lima, hoje em dia conhecido artisticamente como Nato Lima, antes o solista do duo Índios Tabajara, 85 anos aproximadamente, vivendo em Nova York, perto do Central Park.
Em 1963, com o irmão Antenor, lançou o bolero Maria Elena, sucesso mundial, 1,5 milhão de cópias vendidas e que chegou a desbancar os Beatles nas paradas mundiais.
Sobre esses violonistas, escrevi algumas semanas atrás. O que ainda não conhecia era o lado virtuose. Em geral seu repertório era composto de standards, muito comerciais, porém permitindo acompanhar a técnica excepcional de Natalino.
Da coluna que escrevi para cá, tive acesso a várias peças clássicas interpretadas por eles. Não existiu nada que se aproximasse na história do violão brasileiro. Nem pensar em Dilermando, Laurindo. O próprio Odair, após uma apresentação em Nova York, foi cercado por fãs, que o chamavam de gênio. Ele percebeu Natalino, à distância, e informou à distinta platéia: "Gênio é aquele!". E não estava sendo um falso humilde.
A história dos Índios Tabajara é uma epopéia, com tantos episódios rocambolescos que não se sabe o que é lenda e o que é verdade. Conversei longamente com Natalino na semana passada, e dia desses reporto o que ouvi.
Depois de deixar a tribo, desembarcar no Rio de Janeiro, se alistar no Exército e pedir desligamento, Natalino e Antenor começaram carreira circense, depois carreira em cassinos, depois carreira em capitais latino-americanas, até bater no México.
Lá, um dia Natalino entrou em um cinema e assistiu a Cornel Wilde interpretando Frederic Chopin. Ficou hipnotizado com o som. Na mesma hora foi até uma loja de música, comprou vários métodos e se trancou um ano em sua casa aprendendo a ler partitura e a se desenvolver em música. Um ano depois transcreveu para violão a "Valsa em Dó Sustenido Menor", de Chopin.
Meu Deus, o que foi aquilo? O som que ambos tiram não tem paralelo na história do violão brasileiro. Natalino me contou que afinou a corda mais grave do violão, o mi em lá, uma oitava abaixo da quinta corda. Conseguiu um grave que, no piano, fica embaralhado. Depois, usou o violão Del Vecchio de braço estreito, cujas últimas notas chegavam perto do bocal do violão, tirando um som agudo límpido.
Depois foi o "Vôo do Besouro", de Rimsky-Korsakov, com uma velocidade e limpeza que deixariam Yamandú parecendo desleixado. E "Valsa Crioula", de Antonio Lauro, "Recuerdos de Alhambra" e "Ritual da Dança do Fogo", de Manuel de Falla, "Valsa das Flores", de Tchaikovski. Ao todo, os Índios Tabajara gravaram cinco LPs de música clássica.
Por que não houve o devido reconhecimento, no Brasil, nem entre os iniciados? Certamente pelo repertório, bastante comercial. Depois porque os LPs de música clássica não devem ter chegado ao Brasil. E porque os Tabajara não se filiaram a tribo musical nenhuma.
Mas com esses ouvidos, que a terra há de comer, posso afiançar: na história do violão brasileiro não houve técnica igual à de Natalino. Todo ano ele recebe em sua casa violonistas de todas as partes do mundo."Eles acham que eu vou morrer no próximo ano. Mas na minha tribo só tinha índio que vivia muito", diz ele.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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