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OPINIÃO ECONÔMICA
A Lei Modelo sobre Garantias Mobiliárias
JOÃO GRANDINO RODAS
No vetusto movimento
americano de codificação
internacional de regras jurídicas,
pode-se divisar duas fases. Primeiramente as Conferências Pan-Americanas, cujo ápice deu-se em
1827, com a adoção do Código de
Direito Internacional Privado,
mais conhecido como Código de
Bustamante. Passando a vingar a
idéia de codificação gradual e
progressiva, que propugnava a
preparação de convenções sobre
temas específicos, inaugurou-se,
em 1975, a era das Conferências
Interamericanas de Direito Internacional Privado -as Cidips.
Até a presente data, seis Cidips foram realizadas; as cinco primeiras adotaram 21 convenções, das
quais 19 estão em vigor. Delas,
apenas três versam sobre assunto
suscetíveis de ter influxo mais direito na ordem econômica.
A 6ª Cidip, que acaba de encerrar-se em Washington, D.C., foi
inovadora em vários sentidos.
Dois de seus três temas interessam mais de perto à economia:
garantias mobiliárias e conhecimento de embarque. Deixou de
preocupar-se apenas com a codificação de normas de conflito de
leis, passando a empreender a
harmonização de normas de direito substantivo. Pela primeira
vez, utilizou-se de leis modelos.
No que tange aos partícipes, os
Estados Unidos e o Canadá, até
então alheados do processo, tiveram papel protagônico.
Dos três tópicos considerados
na 6ª Cidip, os dois referidos no
parágrafo anterior foram bem-sucedidos, tendo sido aprovadas
três leis modelo, das quais a mais
impactante é a Lei Modelo Interamericana sobre Garantias Mobiliárias, pois, conforme a resolução que a aprovou, ela contribuirá para a modernização da legislação sobre tal espécie de garantias e para reduzir os custo dos
empréstimos, além de facilitar o
comércio e o investimento no hemisfério.
O sistema de lei modelo, surgido
nos EUA para consumo de seus 50
Estados e, posteriormente utilizado internacionalmente, generalizado que foi pela Comissão das
Nações Unidas para o Direito do
Comércio Internacional (Uncitral), vem sendo considerado, na
atualidade, como permitindo
maior flexibilidade, se comparado com o sistema tradicional de
aprovar tratados internacionais.
O anteprojeto da Lei Modelo em
questão foi preparado em reuniões de especialistas, ao longo de
vários anos, e, por fim, submetido
ao refinamento e ao consenso de
representantes governamentais
de 34 países das Américas. Muito
embora seu texto não seja obrigatório, possui autoridade, sendo os
Estados da região encorajados a
adotar legislação interna consistente com ela.
A lei modelo em tela, com 72 artigos divididos em oito títulos, como já se disse, compõe-se de normas de direito substantivo, que,
mormente para países de direito
continental, são sobremodo inovadoras: Enquanto há nesses países espécies diferentes de garantia
-penhor para bens, alienação fiduciária para bens de consumo,
caução para títulos e hipoteca para aeronaves, navios etc.- propõe unificação sob a denominação garantia mobiliária (security
interest). Aumenta o alcance da
instituição de garantia real sobre
vasto espectro de bens e direitos,
corpóreos e incorpóreos, como estoques de empresa, cartas de crédito e direitos patrimoniais, bem
como possibilita sua instituição
sobre bens ou créditos futuros. A
garantia real mobiliária dá-se pelo registro, e não mais pela transmissão da posse, quer física, quer
ficta. Torna simples e rápido o
processo de execução judicial e
extrajudicial das garantias mobiliárias, instituindo o sistema de
contenciosidade limitada.
A lei aplicável ao registro é a do
lugar em que é feito (lex fori), dependendo a eficácia da garantia
de registro no país de localização
do bem, assim como no país de
domicílio do devedor. O fato de a
garantia registrada não possuir
eficácia extraterritorial pode ser
compensado pela unificação dos
sistemas de consulta de registros
de vários países; daí ter-se aprovado, em conjunto com a lei lei
modelo, regras uniformes para
documentos e assinaturas eletrônicas.
A incorporação dos preceitos da
lei modelo ao ordenamento jurídico brasileiro pressuporia amplas modificações, minoradas em
parte em virtude de o novo Código Civil agasalhar uma única garantia mobiliária, o penhor, deixando de prever a alienação fiduciária e substituindo a caução pelo penhor de direitos. Ainda assim, impor-se-iam outras mudanças na lei civil, bem como modificações no direito registral e no
Código de Processo Civil. Essas
modificações seriam indispensáveis para introduzir a garantia
sobre bens futuros, que compreende os que ainda não têm
existência -créditos futuros e
bens por fabricar, como os que serão objetos de aquisição por parte
do outorgante. A maior modificação se constituirá na criação de
um registro federal único, que facilitará enormemente o acesso às
informações. Atualmente, o penhor é registrado no Cartório de
Títulos e Documentos, devendo
em se tratando de penhor agrícola, pecuário ou industrial, ser registrado também no Registro de
Imóveis. Por seu turno, o Detran
tem ao seu cargo as alienações fiduciárias sobre veículos. Objetivando tornar simples e rápido o
processo de execução da garantia
mobiliária, o sistema de contenciosidade limitada, acolhido pela
lei modelo, estabeleceu a exceção
de pagamento como única defesa
do devedor a ter efeito suspensivo,
corrigindo-se eventuais injustiças
por meio do ressarcimento dos
prejuízos. Como, no Brasil, a execução extrajudicial possui limites
estreitos, e tendo em vista ser regra constitucional a pluralidade
de recursos judiciais, o sistema de
contenciosidade limitada representa o ponto mais nevrálgico para a adoção do preceituado pela
lei modelo.
A Lei Modelo sobre Garantias
Mobiliárias, pela simplicidade de
suas soluções, que possibilitam
agilidade dos negócios em segmento tão importante da economia e, ao mesmo tempo, respeita
o "devido processo legal", está fadada a ser reproduzida em muitos dos países americanos. Aqueles que não o fizerem ou o realizarem tardiamente terão muito que
perder. No que tange ao nosso
país, uma das maiores economias
do hemisfério, o mínimo que se
pode esperar é que passe a estudar com afinco a possibilidade da
adoção da lei modelo, pois, certamente, o estado atual da legislação pátria sobre as garantias mobiliárias faz parte do "custo Brasil". Por fim, forçoso é concluir
que a harmonização nas Américas de tão importante setor, dentro de parâmetros de rapidez
(tempo econômico) e segurança
jurídica significará um grande
salto.
João Grandino Rodas é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, presidente da Comissão Jurídica Interamericana da OEA e
presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)
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