São Paulo, segunda-feira, 01 de abril de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

A Lei Modelo sobre Garantias Mobiliárias

JOÃO GRANDINO RODAS
No vetusto movimento americano de codificação internacional de regras jurídicas, pode-se divisar duas fases. Primeiramente as Conferências Pan-Americanas, cujo ápice deu-se em 1827, com a adoção do Código de Direito Internacional Privado, mais conhecido como Código de Bustamante. Passando a vingar a idéia de codificação gradual e progressiva, que propugnava a preparação de convenções sobre temas específicos, inaugurou-se, em 1975, a era das Conferências Interamericanas de Direito Internacional Privado -as Cidips. Até a presente data, seis Cidips foram realizadas; as cinco primeiras adotaram 21 convenções, das quais 19 estão em vigor. Delas, apenas três versam sobre assunto suscetíveis de ter influxo mais direito na ordem econômica.
A 6ª Cidip, que acaba de encerrar-se em Washington, D.C., foi inovadora em vários sentidos. Dois de seus três temas interessam mais de perto à economia: garantias mobiliárias e conhecimento de embarque. Deixou de preocupar-se apenas com a codificação de normas de conflito de leis, passando a empreender a harmonização de normas de direito substantivo. Pela primeira vez, utilizou-se de leis modelos. No que tange aos partícipes, os Estados Unidos e o Canadá, até então alheados do processo, tiveram papel protagônico.
Dos três tópicos considerados na 6ª Cidip, os dois referidos no parágrafo anterior foram bem-sucedidos, tendo sido aprovadas três leis modelo, das quais a mais impactante é a Lei Modelo Interamericana sobre Garantias Mobiliárias, pois, conforme a resolução que a aprovou, ela contribuirá para a modernização da legislação sobre tal espécie de garantias e para reduzir os custo dos empréstimos, além de facilitar o comércio e o investimento no hemisfério.
O sistema de lei modelo, surgido nos EUA para consumo de seus 50 Estados e, posteriormente utilizado internacionalmente, generalizado que foi pela Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (Uncitral), vem sendo considerado, na atualidade, como permitindo maior flexibilidade, se comparado com o sistema tradicional de aprovar tratados internacionais. O anteprojeto da Lei Modelo em questão foi preparado em reuniões de especialistas, ao longo de vários anos, e, por fim, submetido ao refinamento e ao consenso de representantes governamentais de 34 países das Américas. Muito embora seu texto não seja obrigatório, possui autoridade, sendo os Estados da região encorajados a adotar legislação interna consistente com ela.
A lei modelo em tela, com 72 artigos divididos em oito títulos, como já se disse, compõe-se de normas de direito substantivo, que, mormente para países de direito continental, são sobremodo inovadoras: Enquanto há nesses países espécies diferentes de garantia -penhor para bens, alienação fiduciária para bens de consumo, caução para títulos e hipoteca para aeronaves, navios etc.- propõe unificação sob a denominação garantia mobiliária (security interest). Aumenta o alcance da instituição de garantia real sobre vasto espectro de bens e direitos, corpóreos e incorpóreos, como estoques de empresa, cartas de crédito e direitos patrimoniais, bem como possibilita sua instituição sobre bens ou créditos futuros. A garantia real mobiliária dá-se pelo registro, e não mais pela transmissão da posse, quer física, quer ficta. Torna simples e rápido o processo de execução judicial e extrajudicial das garantias mobiliárias, instituindo o sistema de contenciosidade limitada.
A lei aplicável ao registro é a do lugar em que é feito (lex fori), dependendo a eficácia da garantia de registro no país de localização do bem, assim como no país de domicílio do devedor. O fato de a garantia registrada não possuir eficácia extraterritorial pode ser compensado pela unificação dos sistemas de consulta de registros de vários países; daí ter-se aprovado, em conjunto com a lei lei modelo, regras uniformes para documentos e assinaturas eletrônicas.
A incorporação dos preceitos da lei modelo ao ordenamento jurídico brasileiro pressuporia amplas modificações, minoradas em parte em virtude de o novo Código Civil agasalhar uma única garantia mobiliária, o penhor, deixando de prever a alienação fiduciária e substituindo a caução pelo penhor de direitos. Ainda assim, impor-se-iam outras mudanças na lei civil, bem como modificações no direito registral e no Código de Processo Civil. Essas modificações seriam indispensáveis para introduzir a garantia sobre bens futuros, que compreende os que ainda não têm existência -créditos futuros e bens por fabricar, como os que serão objetos de aquisição por parte do outorgante. A maior modificação se constituirá na criação de um registro federal único, que facilitará enormemente o acesso às informações. Atualmente, o penhor é registrado no Cartório de Títulos e Documentos, devendo em se tratando de penhor agrícola, pecuário ou industrial, ser registrado também no Registro de Imóveis. Por seu turno, o Detran tem ao seu cargo as alienações fiduciárias sobre veículos. Objetivando tornar simples e rápido o processo de execução da garantia mobiliária, o sistema de contenciosidade limitada, acolhido pela lei modelo, estabeleceu a exceção de pagamento como única defesa do devedor a ter efeito suspensivo, corrigindo-se eventuais injustiças por meio do ressarcimento dos prejuízos. Como, no Brasil, a execução extrajudicial possui limites estreitos, e tendo em vista ser regra constitucional a pluralidade de recursos judiciais, o sistema de contenciosidade limitada representa o ponto mais nevrálgico para a adoção do preceituado pela lei modelo.
A Lei Modelo sobre Garantias Mobiliárias, pela simplicidade de suas soluções, que possibilitam agilidade dos negócios em segmento tão importante da economia e, ao mesmo tempo, respeita o "devido processo legal", está fadada a ser reproduzida em muitos dos países americanos. Aqueles que não o fizerem ou o realizarem tardiamente terão muito que perder. No que tange ao nosso país, uma das maiores economias do hemisfério, o mínimo que se pode esperar é que passe a estudar com afinco a possibilidade da adoção da lei modelo, pois, certamente, o estado atual da legislação pátria sobre as garantias mobiliárias faz parte do "custo Brasil". Por fim, forçoso é concluir que a harmonização nas Américas de tão importante setor, dentro de parâmetros de rapidez (tempo econômico) e segurança jurídica significará um grande salto.


João Grandino Rodas é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, presidente da Comissão Jurídica Interamericana da OEA e presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)

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