São Paulo, domingo, 01 de junho de 2008

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LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Indagações impertinentes


O gasto familiar americano cresceu bem mais do que a renda, "alavancado" pelo endividamento acelerado

NOS ÚLTIMOS dez anos -entre o primeiro trimestre de 1998 e o mesmo período deste ano- o PIB dos Estados Unidos cresceu 31%, ou seja, 2,7% ao ano. O consumo das famílias avançou 3,4% ao ano e elevou sua participação no PIB de 67,1% para 71,6%. Não é preciso ser esperto para concluir que o "ajustamento" se deu mediante a redução da poupança das famílias, que despencou de 4,7% para 0,2% do PIB. Utilizo os dados do economista Michel Husson.
Os gastos das famílias norte-americanas cresceram bem acima da renda disponível, "alavancados" pela expansão acelerada do endividamento. Na última década, contrariando a experiência dos anos 50 e 60, o crescimento do consumo das famílias "descolou" da evolução da renda. Tornou-se cada vez mais dependente do efeito-riqueza.
Já escrevi nesta coluna que a forma especificamente capitalista do consumo começa a se definir entre o final do século 19 e a primeira metade do século 20, com a suburbanização das cidades e a difusão dos bens duráveis impulsionada pelo desenvolvimento do crédito e pelas técnicas de propaganda inerentes à concorrência monopolista. A constituição de um sistema de proteção social nos anos 30 e as políticas de sustentação da renda e do emprego contribuíram decisivamente para o avanço do "consumo capitalista".
Esse componente da demanda deve ser assim qualificado por conta da forma de financiamento do gasto.
As novas modalidades de crédito (cartões de crédito, por exemplo) e a valorização do estoque de riqueza ao longo dos ciclos de expansão desvincularam o consumo da renda corrente. Nos últimos dez anos, as famílias norte-americanas usufruíram os benefícios dos ganhos de produtividade dos trabalhadores asiáticos, a despeito do modesto crescimento da renda e do emprego. Não bastassem os ganhos reais que proporcionaram, os emergentes "exportadores" passaram a destinar as reservas acumuladas para o financiamento do déficit em conta corrente dos parceiros consumistas, garantindo taxas de juros módicas para "bancar" a corrente da felicidade.
O modelo norte-americano -se preferir o leitor, sino-americano- suscitou o surgimento de neoconsumidores nos países emergentes de crescimento rápido. A incorporação dos novos contingentes pressionou os preços da energia, dos alimentos e das matérias-primas. O choque de oferta elevou os índices de inflação, neutralizando os efeitos "deflacionários" das escaladas industriais asiática e chinesa.
Muitos indagam se a inflação de commodities -"puxada" pela demanda chinesa e associada à desvalorização do dólar- pode se transformar num descontrole inflacionário global. Nessa quadra de contração do crédito e de desaceleração da economia global, não é trivial avaliar tendências. Há quem relembre os anos 70, invocando a estagflação.
Outros, mais preocupados com o longo prazo, indagam se é possível manter o estilo de crescimento global apoiado nos padrões de consumo em voga, ou seja, na utilização predatória e irracional dos recursos naturais.


LUIZ GONZAGA BELLUZZO , 65, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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