São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Poupança, crédito e investimento

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

No arsenal de conceitos macroeconômicos, a poupança goza de um prestígio tão inabalável quanto suspeito. Desde Nassau Sênior, a justificava do lucro buscou suas razões morais e econômicas na recompensa da "abstinência" ou na postergação do consumo presente. Assim, a poupança como condição prévia para a realização do investimento, tornou-se uma das casamatas mais inexpugnáveis da chamada teoria econômica. Só os heréticos - de grande, médio e pequeno porte - ousaram desafiar este dogma da religião do mercado. Entre os grandes, Marx e Keynes lançaram as mais furiosas diatribes, entremeadas de sarcasmos, contra o que consideravam a obra-prima dos filisteus do liberalismo.
Marx morreu em 1883, ano em que nasceu Keynes. Neste momento, entre o final do século XIX e os primórdios do século XX, ocorriam importantes transformações na forma de existência do capitalismo. A meu ver, entre tantas, sobressai a convergência entre três processos interdependentes: 1) a consolidação do sistema monetário e de pagamentos internacional, mediante a adoção de um padrão monetário universal; 2) a metamorfose do sistema de crédito expressa no aparecimento dos bancos de depósito que ajustam suas funções e formas de operação à nova economia comandada pela industria; 3) a emergência de uma nova divisão social do trabalho, consubstanciada na crescente separação técnica e econômica entre o departamento de meios de consumo e o departamento de meios de produção.
Na esfera "real", a diferenciação técnica do produto entre os setores que produzem bens de consumo e os que se destinam diretamente para a acumulação produtiva libertou, do ponto de vista material, o investimento da poupança prévia. A partir da separação entre meios de produção e meios de consumo, o progresso técnico endógeno inerente ao desenvolvimento das forças produtivas especificamente capitalistas - desembaraça o movimento de acumulação produtiva dos limites externos e "naturais" à sua expansão.
Na órbita monetário-financeira, o desenvolvimento da economia capitalista suscitou a metamorfose do sistema de crédito: a atividade principal dos bancos, nos primórdios do capitalismo, se concentrou no financiamento da dívida pública (garantida por impostos) e do comércio a longa distancia. Depois da revolução industrial, com a aceleração dos negócios, não só cresceram as operações de desconto mercantil, como se expandiu o avanço de crédito aos produtores privados. Neste momento, o crédito assume sua função de antecipação de capital monetário: uma aposta, sujeita a perdas, no acréscimo de valor a ser criado no processo de produção, entendido como a utilização da força de trabalho assalariada e dos elementos do capital fixo e circulante na transformação de bens com o propósito de gerar mais dinheiro na venda das mercadorias produzidas.
Os empresários em conjunto, podem gastar acima de suas receitas correntes por conta da existência do sistema de crédito, que inclui os bancos e os demais intermediários financeiros. Operando num regime de reservas fracionárias e, sobretudo, sob a proteção de uma instituição central provedora de liquidez e redutora de riscos, os bancos desfrutam de uma condição peculiar em relação ao demais intermediários financeiros: a prerrogativa de multiplicar depósitos, isto é, passivos bancários que são aceitos como meios de pagamento. Estes depósitos podem ser movimentados por seus titulares com o propósito de adquirir bens e serviços ou de liquidar contratos.
Os capitalistas gastam na expectativa capturar lucros, enquanto geram ao pagar os "fatores de produção" - a renda da comunidade. No processo de "fechamento" do circuito gasto-utilização da renda, os lucros capturados pelas empresas e a fração da renda não-gasta, apropriada pelas famílias, definem o montante da poupança agregada, ou seja, o funding adicional necessário para o pagamento do serviço das dívidas e a acumulação de riqueza.
A poupança monetária tem uma dupla natureza: enquanto abstenção do consumo é um ato negativo, ao mesmo tempo em que se apresenta como uma reivindicação positiva à posse da riqueza abstrata. Mas, a decisão individual quanto a sua utilização tem conseqüências importantes: a aquisição de ativos novos ou existentes, reais ou financeiros vai reconfigurar de formas distintas a situação patrimonial de empresas e famílias. Assim, o fluxo de poupança vai redefinindo, na margem, a posição de empresas e famílias - como credores e devedores líquidos - no estoque de direitos sobre a renda e sobre o patrimônio. Numa hipotética economia fechada e sem governo, quanto maior a propensão a poupar das famílias, menor será a receita das empresas e maior seu endividamento.
O desejo de investir, de criar riqueza nova não é, um desejo abstrato de "possuir mais riqueza", como no ato de poupar. E se há o desejo é porque da riqueza se espera um rendimento, cuja avaliação é também particular à nova riqueza (depende de sua capacidade em preservar-se contra concorrência e substituição tecnológica, da demanda esperada pelo bem ou bens que ela pode servir na produção, dos custos de produção projetados, etc.). O preço de reprodução deste ativo de capital (o preço de oferta) é outro determinante. Finalmente, depende da taxa de conversão que traduz o fluxo de rendimentos prováveis desta riqueza particular na riqueza geral (o dinheiro), ou seja, da taxa de juro.
O processo de reprodução capitalista - em suas indissociáveis dimensões material e monetária - impôs, portanto, a consolidação do sistema bancário incluído o banco central e sua dominância na hierarquia de poderes que comandam a concorrência entre as empresas. Nesta economia com grande concentração de capital fixo e dominância dos bancos na intermediação financeira, a dinâmica de longo prazo está fundada na busca do aumento da produtividade social do trabalho, o que, por sua vez impulsiona a competição feroz pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de insumos e equipamentos. Mas esta tendência só pode se cumprir em meio a flutuações cíclicas e crises provocadas pela busca incessante da acumulação de riqueza abstrata, cujos limites vem sendo alargados pela elasticidade crescente da oferta de crédito.
A poupança prévia como condição para o investimento é uma idéia adequada para uma economia de base agrícola, pouco diferenciada e com baixo dinamismo tecnológico. O fundo de salários dos trabalhadores se confunde materialmente com a fração reservada para a ampliação da produção no próximo período e o crédito só pode nascer da transferência da "poupança" real entre produtores superavitários e deficitários. Neste caso, os bancos cumpriam a função de meros intermediários financeiros.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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