São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LUÍS NASSIF

As brasileirinhas e o futebol

O relógio das menininhas são os desenhos no canal infantil da TV a cabo. Começam às 19h, com um desenho de nome estranho, "Rubadubbers", que elas pronunciam com um erre de texano ou de mineiro. Às 19h30, vão para cama. Como à noite pouco as encontro acordadas, quando estou em casa assistem a desenhos debaixo da minha asa.
Por esse conjunto de circunstâncias, achei que haveria certa dificuldade em assistir à final da Copa América, sem abrir mão da companhia das duas. Vieram para minha asa e tive de assistir ao insuportável. Ainda tentei negociar algum "Tom & Jerry", "Pernalonga", mas em vão.
Aproveitei o intervalo do desenho, mudei de canal, as menininhas chiaram um pouco, mas começaram a se acostumar com o jogo. Desde a Copa do Mundo passada, aprenderam a reconhecer a bandeira nacional e, sempre que passo pelo estádio do Pacaembu e tem jogo, elas gritam Brasil.
Quando a partida estava chegando ao final, a Argentina marcou, Deus empatou a 20 segundos do final e se foi para a disputa por pênaltis. Com ar falsamente compungido, comuniquei às menininhas que o desenho dançara: o Brasil estava disputando a final. Nem foi preciso muita lábia: as brasileirinhas já estavam ligadas no jogo.
A cada batida de pênalti do Brasil elas me davam a mão, formava-se a corrente e gritávamos em coro: "Marca, marca...". A cada batida da Argentina, o coro invertia: "Erra, erra...". E, a cada gol nosso, a celebração, com os punhos levantados. Quando terminou o jogo, ambas estavam vermelhinhas de emoção e de gritar. Eram duas brasileirinhas exemplares.
E aí fui me dando conta da relevância do esporte na formação da nacionalidade. Na minha infância, o conde Afonso Celso ainda era reverenciado. Orgulhávamo-nos de morar em um país tão grande e importante, comemorávamos as vitórias contra o Paraguai de Lopes e a Argentina de Rosas.
Mas o coração começou a bater verde-amarelo de fato nas Copas do Mundo. A de 1958 acompanhei cada segundo da transmissão final, com meu pai do lado morrendo de medo de se repetir a tragédia do Maracanã. Naquela Copa, tia Rosita preparou um doce árabe, de nome macrum. Como ganhamos, o doce virou padrão: todo jogo do Brasil tia Rosita tinha que fazer o tal macrum. Muito doce para mim, mas tudo pela vitória.
Pior sorte teve o Nelson Paina, empregado da fábrica de doces do meu tio Léo. Num assomo de patriotismo, em 1958 prometeu comer mexerica com casca e tudo se o Brasil vencesse. Teve que repetir o ato heróico em cada jogo da Copa de 1962. Na de 1966, nem ponkan foi suficiente. Na de 1970, esquecemos o travo amargo da ditadura, de que não era politicamente correto torcer pelo Brasil, e saímos em passeata comemorando o tricampeonato.
Tia Rosita só se recusava a fazer o macrum quando o Brasil jogava com a Argentina, sua terra natal. Ensinou-nos a cantar as "señoritas de San Nicola", desistiu de nos ensinar o hino argentino e a querer comparar San Martín com Caxias. Mas não abriu mão de, nos jogos das duas seleções, torcer pelo empate.
Com as meninas mais velhas, ocorreu o mesmo. Em 1982, com pouco mais de três anos, a Maricota ficou traumatizada com os berros que dei em homenagem à seleção de Zagallo. E perguntou por que estava tão triste, quando me viu com a ressaca da derrota para a Itália. Aquela Copa foi o Maracanã de 50 para nossa geração. Meu Deus!, como pôde perder? Telê, Sócrates, Zito, Falcão, Cerezzo, Éder. Deixa pra lá...
Por isso mesmo, fico meio atravessado quando, em períodos eleitorais, misturam futebol e política, acham que uma vitória em campeonato pode melhorar a imagem do governo, assim como uma derrota precipitar a vitória da oposição.
Com toda a politização do futebol, com os abusos e a desorganização, está aí uma festa da qual presidente nenhum conseguiu se apropriar, nem Médici, cujo ato mais conhecido era dar pontapé inicial em partida de futebol.
Quando a seleção entra em campo, é a pátria de chuteiras, sim, com muito orgulho, com muita celebração. É uma pedagogia cívica das maiores.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


Texto Anterior: Lições Contemporâneas - Luiz Gonzaga Belluzzo: Poupança, crédito e investimento
Próximo Texto: Do outro lado do balcão: Armínio investe em cafeteria
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.