São Paulo, quarta-feira, 01 de agosto de 2007

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PAULO RABELLO DE CASTRO

A sorte, a Deus


Entregar a sorte a Deus é o estágio de humildade do líder, que sabe distinguir entre o que conhece e o que não domina


O DEBATE econômico da crise ganha, agora, impulso filosófico. Em duas frases lapidares, o presidente da República resumiu a questão do risco e suas seqüelas. A primeira frase: "A gente faz o que pode. Quando não dá pra fazer, a gente deixa pra ver como é que fica". A outra: "Quando entro num avião, entrego a sorte a Deus". Essa, na posse do seu novo ministro da Defesa, Nelson Jobim.
As duas frases resumem o que levou séculos de transpiração a grandes intelectuais, entre filósofos, matemáticos e economistas, ao tentarem buscar o melhor caminho para reconciliar o homem com seu futuro, ou seja, gerir o que ainda não aconteceu, a arte de antecipar e prever, prevenir as chances do acaso e, às vezes, o infortúnio e a tragédia.
Dominar o risco sempre foi essencial ao progresso da humanidade. Quando o presidente afirma ser preferível não fazer nada a tentar fazer o que não sabe, ele reflete o papel da repetição e dos hábitos na construção de "certezas" numa sociedade tradicional, a qual recorria aos oráculos e videntes para perscrutar o lado desconhecido da vida.
Aos poucos, a acumulação de conhecimentos, por meio da educação científica e do treinamento, foi abrindo novos caminhos para a razão dominar o medo, o pavor do desconhecido. Daí o papel dos líderes que, por razão ou intuição, conduziam seus povos a superar desafios.
Entregar a sorte a Deus, como afirmou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sobre o medo de voar, é o estágio de humildade do líder, que sabe distinguir entre o que conhece e o que, de fato, não domina. Peter Bernstein, no livro "Desafio aos Deuses: A Fascinante História do Risco" (ed. Campus), lembra-nos de que a explosão do conhecimento, nos anos recentes, só serviu para tornar nossa vida mais incerta e difícil de compreender. É a "lei da ignorância (relativa) crescente", que pesquisei em Chicago, na década de 1970, e que vem ganhando novos contornos na situação brasileira atual.
Tomemos o caso da crise aérea. As causas do último acidente remontam a muito mais do que apenas a chuva, ou o pino do reverso, ou uma possível falha humana. A complexidade do serviço aéreo -a atividade de voar comercialmente- é de tal monta que exige, para começar, órgãos reguladores geridos por profissionais de alto conhecimento técnico e independência, algo impossível de obter nas seleções de pessoal absolutamente "politizadas" de Brasília.
A partir dessa restrição à qualidade no domínio do conhecimento e da razão, faz sentido que o grau de incerteza na aviação civil brasileira tenha aumentado exponencialmente. Como contribuiu, também, para isso o fato de a administração federal haver decidido permitir a "exportação" de centenas dos mais bem treinados pilotos brasileiros, fruto da crise financeira mal resolvida da Varig, no ano anterior. Por azar, foi numa rota partindo da capital gaúcha que se sentiu o peso da tragédia de se haver administrado tão mal os riscos financeiros da aviação, no caso da Viação Aérea Rio-Grandense.
Ao apontar Jobim, um "scholar" gaúcho, para a pasta da Defesa, o presidente buscou aumentar o estoque de conhecimentos gerais e específicos e, sobretudo, de seriedade e coragem para intuir caminhos e ousar, no largo espaço do desconhecido que se abre diante do país. Daí o papel das lideranças, nas grandes sociedades. O resto é com a sorte, ou Deus.

PAULO RABELLO DE CASTRO , 58, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, classificadora de riscos. Preside também a RC Consultores, consultoria econômica, e o Conselho de Planejamento Estratégico da Fecomercio SP. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

rabellodecastro@uol.com.br


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