São Paulo, Domingo, 01 de Agosto de 1999
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'Brasil também fez concessões'

Folha - Por que a Argentina atendeu à pressão do Brasil e recuou nas salvaguardas?
Herrera Vegas
- A forte reação brasileira, anunciando a suspensão de todas as negociações, inclusive do setor automotivo, criou um enorme grau de preocupação na Argentina.
A Argentina continua tendo um superávit comercial com o Brasil, de cerca de US$ 300 milhões, mas até o final do ano essa posição vai se inverter por causa do forte crescimento das exportações brasileiras. Isso é preocupante? É.
É preciso ver, entretanto, que o Brasil também fez algumas concessões. A mais importante foi aceitar estudos para a criação de uma espécie de mecanismo, ou de um "gatilho", para compensar ou neutralizar mudanças importantes de câmbio, por exemplo, que prejudiquem o fluxo comercial entre os parceiros.

Folha - Há setores brasileiros que temem uma repentina mudança de política cambial na Argentina. Há possibilidade de desvalorização do peso?
Herrera Vegas
- A Argentina já está dolarizada, isso não tem volta. A maioria dos depósitos bancários já é em dólar, as dívidas das empresas e do próprio governo são em dólar, os contratos e as tarifas das privatizações de energia, de telefonia e os pedágios são em dólar. É impossível voltar atrás. A possibilidade de desvalorização cambial na Argentina não existe.
É até uma questão cultural. O meu cabeleireiro aqui em Brasília, o Avelino, do Hotel Aracoara, me cobrava R$ 14 há dois anos e mesmo com uma desvalorização de cerca de 40% continua cobrando os mesmos R$ 14. O que era US$ 12 virou US$ 8 e nem por isso ele aumentou o preço.
Na Argentina, a sociedade calcula todos os preços, inclusive de serviços, em dólar. Se houvesse uma desvalorização do peso de 40%, no dia seguinte tudo estaria custando 40% mais caro, inclusive o cabeleireiro.
É por isso que, aqui, todos previam uma inflação de 40% por causa da desvalorização, mas não vai chegar nem a 10%.

Folha - Nesse estágio de dolarização na Argentina, como é possível falar em moeda única do Mercosul? A não ser que a "moeda única" seja o dólar.
Herrera Vegas
- O dólar é como o sol no sistema planetário. É a moeda mais importante do mundo. Mas não é a única. A moeda única pode ser dólar, euro, peso, ouro, o que se quiser, desde que seja estável. Isso é o que importa. Em 7 de junho os presidentes Menem e Cardoso acertaram em Buenos Aires que haverá no Mercosul uma espécie de "mini Maastricht" (o tratado que estabeleceu metas macroeconômicas para os países da União Européia). Tanto que os parlamentos dos dois países estão agora votando leis de responsabilidade fiscal, para reduzir o déficit público, equilibrar as contas, conter a inflação.

Folha - O sr. tem alguma esperança em que dê certo?
Herrera Vegas
- Os políticos gastam dinheiro por natureza. Ninguém é eleito por proselitismo, discurso, idéias, mas por realizações. E elas custam dinheiro.

Folha - A irritação argentina com os subsídios para a instalação da Ford na Bahia já está superada, ou ficaram mágoas?
Herrera Vegas
- O debate da ida da Ford para a Bahia foi assim: todo mundo na Bahia achava que era muito bom para a Bahia, e todo mundo que não era da Bahia protestava. Incluindo a Argentina. O problema das guerras fiscais entre países, regiões, Estados é que a realidade fica distorcida, a concorrência é desleal.

Folha - Ficaram mágoas?
Herrera Vegas
- Não quero ficar falando nisso. A Argentina fez uma reclamação por escrito, depois veio o veto parcial do presidente Cardoso. Não me cabe ficar discutindo o que já foi decidido. Eu diria que o veto parcial não satisfaz totalmente, mas registramos que houve uma redução dos incentivos.

Folha - A decisão argentina de estabelecer salvaguardas para uma série de produtos foi uma retaliação ao caso da Ford?
Herrera Vegas
- Penso que foi uma resposta aos setores empresariais argentinos, que se sentem prejudicados pela recessão e pressionam o governo e os políticos.

Folha - O problema mais grave continua sendo o do açúcar?
Herrera Vegas
- Sem dúvida. É o produto de mão-de-obra mais extensiva do Mercosul e é de difícil substituição, ao contrário do milho e da soja, por exemplo. O Brasil é o maior produtor de cana-de-açúcar, mas transforma boa parte em álcool-combustível, com subsídio para o setor. Então, é muito difícil fazer a transição para um regime de tarifa zero.

Folha - Como estão, hoje, as relações Brasil-Argentina?
Herrera Vegas
- Muito bem. Essas quatro ou cinco controvérsias são muito divulgadas, muito criticadas, mas o mais importante é que há mil, 1.500 outras coisas que estão sendo bem-sucedidas.

Folha - União Européia ou Alca (bloco liderado pelos EUA)?
Herrera Vegas
- Os dois, porque o Brasil, a Argentina e o Mercosul são "traders globais", ou seja, têm um comércio diversificado com diferentes países, ao contrário do México e do Canadá, que têm em torno de 70% de seu comércio com um único país.


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