São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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LUÍS NASSIF

A morena de Angola

Foi dos últimos momentos de glória do bar do Alemão, ali no viaduto Antártica, reduto de jornalistas e músicos. Saí do fechamento do "Jornal da Tarde", acho que passei em casa para ver minhas menininhas, peguei o bandolim e segui para o bar. O dono e pandeirista Dagô, o sócio, caixa e cavaquinho Nelsinho Risada, já estavam a postos na mesa oito, a da diretoria.
O choro começou a rolar, como toda segunda-feira. Lá pelas 23h e tanto começaram a chegar os profissionais, como sempre chegavam. Eles ocupavam outras mesas, jantavam, bebiam e, depois do estômago aquecido, iam se chegando à mesa oito, e incorporando-se à roda.
Naquela segunda-feira de 1983, chegou o letrista Paulo César Pinheiro. Com ele, Clara Nunes, e o bar alumiou. Há pessoas que encantam pela beleza, pela inteligência, há pessoas que trazem consigo enigmas, desafios. Clara Nunes trazia a paz.
Era impressionante como sua mera presença, de moça bonita -sem dúvida-, simpática sem mais poder, conseguia trazer paz aos ambientes. A música rolou mais solta naquela noite. Pouco depois da meia-noite, Clara Nunes entrou na roda. Saímos de lá depois das três da matina, em estado de graça.
Foi sua despedida da noite paulistana. Após pouco mais de um mês, uma lipoaspiração provocou o choque anafilático que lhe custou a vida. Morreu como a maior sambista de seu tempo.
Os anos 70 foram uma década de grandes sambistas cantores. Entre os homens, houve a figura maior de Roberto Ribeiro e de Marçal, filho do histórico sambista Marçal, parceiro de Bide. Entre as mulheres, Alcione, que surgiu das casas noturnas, Beth Carvalho, dos festivais de MPB, e Clara Nunes, de Minas Gerais.
As três eram vítimas de preconceito duplo. Da parte dos puristas da MPB, o samba era gênero respeitado, desde que ficasse na cozinha. Do lado dos sambistas, havia preconceito idêntico contra os que cantavam sem ser do morro. E as três cantoras ousavam tirar o samba do morro e trazer para as paradas de sucesso. Ambicionavam ser populares e ter o status de estrelas, que os puristas da MPB negavam-lhes.
Clara Nunes ia além. Sua ambição era ter o balanço, a popularidade e o status musical de Elizeth Cardoso. Não era pouco. O casamento com Paulo César Pinheiro, que além de letrista impecável já era um líder da categoria, abriu-lhe as portas da igrejinha dos bem-pensantes da MPB.
Além da figura luminosa, da voz extraordinária, da forma como dominava o grave, o agudo e, especialmente, de um "vibrato" incomum, Clara Nunes passou a esbanjar uma personalidade cativante. Na medida em que o sucesso aumentava, crescia também seu orgulho das raízes mineiras, do pai Mané Serrador, cantador de Folia de Reis, da Cruzava Eucarística que a formou e da luta diuturna para sobreviver.
Clara nasceu em 2 de agosto de 1942. O pai morreu quando tinha oito anos, a mãe foi atrás. "Morreu de amor", dizia ela. Com a morte dos pais, os sete irmãos decidiram que não iriam se dividir, como propunham os tios, e se uniram trabalhando e mantendo a família unida.
Aos 16 anos, mudou-se para Belo Horizonte, foi trabalhar como tecelã de dia, e cursar a Escola Normal à noite. Nos finais de semana, dedicava-se ao Coral Renascença. E, sempre que podia, ouvia Ângela Maria, Carmen Costa, e principalmente Dalva de Oliveira e a divina Elizeth.
Em 1960 venceu a etapa mineira do concurso "A Voz de Ouro ABC", cantando "Serenata do Adeus", de Vinicius de Moraes, que a própria Elizeth imortalizara. Fez carreira em Minas, teve seu programa na TV Itacolomi, e desembarcou no Rio em 1965. Antes do samba, cantou bolero. Em 1966 lançou seu primeiro LP. Depois, mais 16 discos. "Claridade", seu maior sucesso, venceu 401 mil cópias.
Por sua voz enluarada passaram "O mar serenou", de Candeia, "Alvorada no Morro", de Cartola, "Candogueiro", de Wilson Moreira e Ney Lopes, e "Morena de Angola", de Chico Buarque, a música que a marcaria para sempre.
Como declarou em uma entrevista da época, "sinto Deus no momento de cantar". Morreu em 2 de abril de 1983, aos 39 anos, de uma anestesia geral, depois de rejeitar uma peridural, sistema em que a anestesia é injetada nas costas. Um pai-de-santo de Recife fechou seu corpo e a havia proibido de fazer qualquer incisão nas costas.
Morreu depois de alcançar o reconhecimento que sempre perseguiu: foi a digna sucessora de Elizeth Cardoso.

E-mail - LNassif@uol.com.br


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