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LUÍS NASSIF
A morena de Angola
Foi dos últimos momentos
de glória do bar do Alemão,
ali no viaduto Antártica, reduto
de jornalistas e músicos. Saí do
fechamento do "Jornal da Tarde", acho que passei em casa para ver minhas menininhas, peguei o bandolim e segui para o
bar. O dono e pandeirista Dagô,
o sócio, caixa e cavaquinho Nelsinho Risada, já estavam a postos na mesa oito, a da diretoria.
O choro começou a rolar, como
toda segunda-feira. Lá pelas 23h
e tanto começaram a chegar os
profissionais, como sempre chegavam. Eles ocupavam outras
mesas, jantavam, bebiam e, depois do estômago aquecido, iam
se chegando à mesa oito, e incorporando-se à roda.
Naquela segunda-feira de
1983, chegou o letrista Paulo César Pinheiro. Com ele, Clara Nunes, e o bar alumiou. Há pessoas
que encantam pela beleza, pela
inteligência, há pessoas que trazem consigo enigmas, desafios.
Clara Nunes trazia a paz.
Era impressionante como sua
mera presença, de moça bonita
-sem dúvida-, simpática sem
mais poder, conseguia trazer paz
aos ambientes. A música rolou
mais solta naquela noite. Pouco
depois da meia-noite, Clara Nunes entrou na roda. Saímos de lá
depois das três da matina, em estado de graça.
Foi sua despedida da noite
paulistana. Após pouco mais de
um mês, uma lipoaspiração provocou o choque anafilático que
lhe custou a vida. Morreu como
a maior sambista de seu tempo.
Os anos 70 foram uma década
de grandes sambistas cantores.
Entre os homens, houve a figura
maior de Roberto Ribeiro e de
Marçal, filho do histórico sambista Marçal, parceiro de Bide.
Entre as mulheres, Alcione, que
surgiu das casas noturnas, Beth
Carvalho, dos festivais de MPB, e
Clara Nunes, de Minas Gerais.
As três eram vítimas de preconceito duplo. Da parte dos puristas da MPB, o samba era gênero respeitado, desde que ficasse na cozinha. Do lado dos sambistas, havia preconceito idêntico contra os que cantavam sem
ser do morro. E as três cantoras
ousavam tirar o samba do morro e trazer para as paradas de
sucesso. Ambicionavam ser populares e ter o status de estrelas,
que os puristas da MPB negavam-lhes.
Clara Nunes ia além. Sua ambição era ter o balanço, a popularidade e o status musical de
Elizeth Cardoso. Não era pouco.
O casamento com Paulo César
Pinheiro, que além de letrista
impecável já era um líder da categoria, abriu-lhe as portas da
igrejinha dos bem-pensantes da
MPB.
Além da figura luminosa, da
voz extraordinária, da forma como dominava o grave, o agudo
e, especialmente, de um "vibrato" incomum, Clara Nunes passou a esbanjar uma personalidade cativante. Na medida em que
o sucesso aumentava, crescia
também seu orgulho das raízes
mineiras, do pai Mané Serrador,
cantador de Folia de Reis, da
Cruzava Eucarística que a formou e da luta diuturna para sobreviver.
Clara nasceu em 2 de agosto de
1942. O pai morreu quando tinha oito anos, a mãe foi atrás.
"Morreu de amor", dizia ela.
Com a morte dos pais, os sete irmãos decidiram que não iriam
se dividir, como propunham os
tios, e se uniram trabalhando e
mantendo a família unida.
Aos 16 anos, mudou-se para
Belo Horizonte, foi trabalhar como tecelã de dia, e cursar a Escola Normal à noite. Nos finais de
semana, dedicava-se ao Coral
Renascença. E, sempre que podia, ouvia Ângela Maria, Carmen Costa, e principalmente
Dalva de Oliveira e a divina Elizeth.
Em 1960 venceu a etapa mineira do concurso "A Voz de Ouro
ABC", cantando "Serenata do
Adeus", de Vinicius de Moraes,
que a própria Elizeth imortalizara. Fez carreira em Minas, teve
seu programa na TV Itacolomi, e
desembarcou no Rio em 1965.
Antes do samba, cantou bolero.
Em 1966 lançou seu primeiro LP.
Depois, mais 16 discos. "Claridade", seu maior sucesso, venceu
401 mil cópias.
Por sua voz enluarada passaram "O mar serenou", de Candeia, "Alvorada no Morro", de
Cartola, "Candogueiro", de Wilson Moreira e Ney Lopes, e "Morena de Angola", de Chico Buarque, a música que a marcaria
para sempre.
Como declarou em uma entrevista da época, "sinto Deus no
momento de cantar". Morreu
em 2 de abril de 1983, aos 39
anos, de uma anestesia geral, depois de rejeitar uma peridural,
sistema em que a anestesia é injetada nas costas. Um pai-de-santo de Recife fechou seu corpo
e a havia proibido de fazer qualquer incisão nas costas.
Morreu depois de alcançar o
reconhecimento que sempre perseguiu: foi a digna sucessora de
Elizeth Cardoso.
E-mail - LNassif@uol.com.br
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