São Paulo, sexta-feira, 02 de janeiro de 2004

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ANÁLISE

Auditores tentam se afastar do escândalo na Parmalat

Max Rossi/Reuters
Reservatórios de leite na principal fábrica da Parmalat na Itália, em Collecchio, perto de Parma


JOHN GAPPER
DO "FINANCIAL TIMES"

Lorenzo Penca talvez venha a se arrepender de suas palavras. O diretor da firma de auditoria Grant Thornton na Itália, que acabou pedindo demissão após o escândalo na Parmalat, pode ter ido longe demais ao afirmar que "na verdade, talvez sejamos nós as vítimas de uma grande fraude", quando tentava se afastar da responsabilidade pelo caso.
Diga isso aos acionistas e aos detentores de títulos, sr. Penca. Mesmo em seus momentos de mais forte lamúria, a polícia não se alega vítima dos ladrões que deveria prender. Afinal, é trabalho do auditor garantir que as contas de uma empresa sejam precisas e honestas.
Pode-se compreender a preocupação de Penca e de David McDonnell, executivo-chefe da Grant Thornton Internacional, a organização central para as empresas de auditoria Grant Thornton nos diferentes países. A empresa americana de auditoria Arthur Andersen não sobreviveu à tolerância que exibiu diante da criatividade contábil da companhia de energia Enron e à subsequente destruição de documentos relacionados ao caso.
Sem querer agourar a Grant Thornton em suas atuais dificuldades italianas, as chances de que a empresa escape a processos judiciais parecem mínimas. Quando mais de 7 bilhões desaparecem em uma empresa auditada por você há 13 anos e uma conta bancária em Nova York que deveria ter saldo de 3,9 bilhões na verdade nem existe, o melhor é contratar um bom advogado o mais cedo possível.

Queixas e culpas
Existem muitas partes queixosas que poderiam ir atrás da Grant Thornton, que auditava 18 das 200 subsidiárias da Parmalat, incluindo a Bonlat Financing Corporation, uma empresa sediada nas Ilhas Cayman que parece ter sido o principal veículo para ocultar os prejuízos do grupo. Eles também podem estar de olho na Deloitte Touche Tohmatsu, que cuida da auditoria do grupo Parmalat desde 1999.
É tentador culpar os auditores em casos como o da Enron e o da empresa de telecomunicações WorldCom, ambas americanas. Diferentemente de bancos como o Barings ou o Bank of Credit and Commerce International (BCCI), as companhias industriais não vivem sob fiscalização financeira.
Embora as agências de classificação de crédito dessem uma nota de nível de investimento aos papéis da Parmalat até pouco antes do colapso da empresa, essas firmas estavam se baseando em contas auditadas.
Mas os credores e acionistas da Parmalat deveriam ter em mente aquele velho dístico: "caveat emptor" (a responsabilidade é de quem compra). A Grant Thornton, ou a Deloitte Touche Tohmatsu, pode ter sido negligente ao permitir os supostos abusos praticados pelo ex-presidente e fundador da empresa, Calisto Tanzi. Mas a existência de fraude não garante sucesso nos tribunais.

Casos diferentes
A defesa adotada por McDonnell, em entrevista ao "Financial Times", é digna de menção. Diferentemente da Arthur Andersen no caso da Enron, lembrou ele, a Grant Thornton não tinha conflito de interesses com relação à Parmalat, porque trabalhava só como auditora da empresa, sem lhe prestar serviços de consultoria.
"Nós nos mantivemos independentes. Não estivemos envolvidos na destruição de provas. O pior é que se pode dizer é que nos deixamos enganar", afirmou o executivo da empresa de auditoria.
Assim, qual seria a punição apropriada por credulidade? Os detentores de papéis da Parmalat poderiam alegar, como fizeram os liquidantes do Barings, que os auditores são responsáveis pelos prejuízos que os credores de uma empresa sofrem.
Em nível prático, porém, não é fácil aplicar esse preceito. O escândalo da Enron reduziu o clube das grandes empresas de auditoria a quatro membros, ante os cinco que existiam. Mais algumas fraudes bilionárias e seria o fim da auditoria como profissão.

História
O melhor texto sobre o assunto continua a ser o histórico veredicto do juiz Benjamin Cardozo, em Nova York, para um processo de 1931 que envolvia uma agência de empréstimos chamada Ultramares Corporation, a qual concordara em emprestar dinheiro a uma empresa chamada Fred Stern & Co., sob a condição de que esta fosse auditada.
A Stern contratou a Touche, Niven and Company para auditar suas contas e obteve seu empréstimo. Quando deixou de pagá-lo, mais tarde, a Ultramares processou a Touche.
A Ultramares perdeu a causa porque o juiz Cardozo decidiu que a responsabilidade da Touche era para com a empresa que a contratara, e não para com terceiros. "Se existisse responsabilidade por negligência, um engano ou falha involuntário, a incapacidade para detectar roubo ou falsificação sob o disfarce de registros enganosos, isso poderia expor os contadores a responsabilidade legal por valores indeterminados, período indeterminado e de classe indeterminada", afirmou o juiz no veredicto.
Essa abordagem, de restringir a responsabilidade dos auditores à empresa que os contrata e seus acionistas existentes, vem desde então sendo adotada no Reino Unido e no tribunais federais norte-americanos (sendo reforçada, na Justiça britânica, pelo caso Caparo, de 1990).
É um conceito sensato. Uma empresa de contabilidade que mostre negligência deve sofrer certas sanções, mas por que deveria ressarcir, por exemplo, o detentor de um título da dívida de uma empresa? O risco de inadimplência de um dos participantes, afinal, é que o leva os investidores a terem papéis de dívida de diversas entidades.

Paralelos
Ainda que a fraude da Parmalat venha sendo comparada à da Enron, o melhor paralelo, em termos contábeis, seria o caso do banco Barings.
A trapaça empreendida por Nick Leeson, um operador de derivativos em Cingapura, também envolvia prejuízos multimilionários escondidos em uma conta local. Também havia duas empresas envolvidas na auditoria das contas, a Coopers & Lybrand (agora parte da PricewaterhouseCoopers) e a Deloitte & Touche.
A Grant Thornton pode encontrar algum motivo para esperança no caso Barings, que foi encerrado no ano passado depois de sete anos de disputas na Alta Corte do Reino Unido.
A Coopers & Lybrand fechou acordo para pagar 65 milhões de libras esterlinas, no final de 2001, por ter aprovado as contas do Barings depois que Leeson enviou por fax, de sua casa, um documento falsificado. O fax, supostamente oriundo de Nova York, tinha na linha de remetente "de Nick e Lisa".
Já a Deloitte & Touche teve de pagar apenas 1,5 milhão de libras esterlinas por negligência quanto a duas contas menores. Isso aconteceu a despeito de ser ela a responsável pela auditoria das operações do Barings em Cingapura, onde Leeson executava suas falsas operações. O juiz aceitou a defesa de que cabia primordialmente aos dirigentes do Barings detê-lo, e não aos auditores.
Desde que as mãos da Grant Thornton estejam tão limpas quanto alega McDonnell e que a conta forjada no Bank of America, em que a Parmalat reivindicava ter depósitos na verdade inexistentes, não porte marcas tão comprometedoras quanto o fax "de Nick e Lisa", os auditores da empresa italiana provavelmente sobreviverão.
E isso não seria injusto. A Grant Thornton deveria ter detectado a fraude mais cedo, é claro, mas nem toda falha desse tipo deveria implicar pena de morte.
Penca errou ao alegar que sua empresa de auditoria era vítima da fraude da Parmalat. Mas a firma de auditoria tampouco parece (até agora) ter sido uma cúmplice voluntária. Comportou-se mais como um policial que não consegue impedir um roubo. Se detivéssemos policiais por isso, as prisões estariam cheias.


Tradução de Paulo Migliacci


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