São Paulo, sábado, 02 de janeiro de 2010

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ROBERTO RODRIGUES

Amor ao campo


É preciso amor para ser agricultor ou pecuarista. Que 2010 seja de muita sorte e amor aos produtores rurais


OUTRO DIA , em um desses intermináveis voos noturnos internacionais, caiu-me às mãos um exemplar da revista "Harper's Magazine" de dezembro passado, na qual o articulista Wendell Berry fazia referência a livros escritos por Louis Bromfield na década de 50 do século passado, falando da agricultura.
Lembrei-me bem do livro "Vale Aprazível" porque era com essa frase que minha mãe saudava a chegada à fazenda todos os anos para as férias prolongadas de dezembro a fevereiro. Íamos todos -até o fox paulistinha Tupi- embrulhados em guarda-pós quando estava seco ou chacoalhando a lama quando chovia, no velho DeSoto 49 que resfolegava nas estradas de terra de São Paulo de outrora.
O artigo falava de amor à agricultura, porque era disso que Bromfield tratava: para ser agricultor ou pecuarista, é preciso amar essa atividade. E seguramente um cidadão urbano, por mais correto que seja, terá dificuldades em compreender esse amor. Como pode o lavrador ser tão apaixonado pelo que faz? Levantar-se ainda no escuro para organizar o dia, preparar a semeadura ou ordenhar a vacada? Lidar o tempo todo com poeira, barro, graxa, defensivos, esterco, essa "sujeira" toda? Ficar dependendo do tempo, ora pedindo para a chuva parar, ora implorando por uma garoa mínima que faça germinar a semente?
Ora, coisa estranha, esse amor. Mas ele existe e é muitas vezes imenso, superior mesmo à compreensão. No referido artigo, Berry conta uma passagem extraída do "Fausto", de Goethe, quando aquele buscava, tratando com Mefistófeles, uma forma de manter-se jovem para sempre. Na conversa, o Diabo oferece a Fausto, para esse fim, uma poção feita por bruxas. Mas Fausto, nauseado com o aspecto e o cheiro do preparado, pergunta a Mefistófeles (em tradução liberal!):
"Não existiria na natureza, ou alguma nobre mente não teria descoberto algum remédio, algum bálsamo para a eterna juventude?" E o Diabo responde que sim, que havia uma maneira natural de manter-se sempre jovem: "Vá para o campo, e comece logo a trabalhar: cavar, enxadar... Mantenha seus pensamentos, sua atenção e você mesmo nesse trabalho no campo. Coma a comida que você plantar.
Esteja disposto a adubar o campo que vai colher. Essa é a melhor maneira -acredite em mim- para continuar a ser jovem aos 80." Fausto, um intelectual, não aceita o trabalho, argumentando que não aguentaria uma vida tão restrita. E Mefistófeles responde: "Bem, ainda temos as bruxas! (...)"
Na verdade, Berry encontrou uma forma literária para mostrar que a atividade no campo não é mesmo para qualquer um, ainda que ela justificasse uma passagem para a juventude eterna, ambição de tantos. Apenas quem ama esse trabalho, sentindo o prazer único de ver uma semente plantada com esmero germinar e frutificar, enfrentando as pragas, as doenças e as vicissitudes do clima, pode realmente se dedicar à agricultura. Só quem sorri de madrugada ao ver um bezerro recém-nascido tropeçando na busca das tetas da mãe pode ser um pecuarista.
É preciso amar essa missão gloriosa. Mas também é preciso saber cumpri-la. E por fim, é preciso ter sorte... Que 2010 seja um ano de muita sorte e muito amor aos produtores rurais brasileiros. Mesmo que tal amor seja inexplicável... Mas, afinal, qual é o amor que se pode explicar?


ROBERTO RODRIGUES , 67, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Departamento de Economia Rural da Unesp - Jaboticabal, foi ministro da Agricultura (governo Lula). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.

rr.ceres@uol.com.br


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