UOL


São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Repúdio à guerra também reflete interesses econômicos

GILSON SCHWARTZ
ARTICULISTA DA FOLHA

A relação entre interesses econômicos e tendências geopolíticas é óbvia no caso iraquiano. Mas a ênfase tem sido nos interesses dos EUA e de suas empresas. Pouco se fala dos governos que se posicionam contra a guerra ou que se opõem à hegemonia global americana.
Os dois casos mais importantes no Ocidente, França e Alemanha, ilustram bem os interesses econômicos e militares envolvidos. Tomadas pelo valor de face, as declarações de franceses e alemães sugerem que se trata de apelos à moderação, à defesa de direitos humanos e de uma suposta preferência européia pela paz perpétua.
Não é bem assim. No final de 1991, depois de uma rodada de supervisão de centros militares iraquianos pela ONU, ficou provada a existência de um programa de enriquecimento de urânio. Com ajuda alemã.
Dez anos antes, a central nuclear civil de Tamuz foi bombardeada pela aviação israelense, supostamente por encobrir um programa de produção de armas atômicas. A central fora construída com ajuda francesa.
Nos anos 70, os franceses também eram privilegiados, a ponto de um terço dos negócios da empresa CFP depender de contratos com o governo iraquiano.
Mais recentemente, após a suspensão parcial do embargo da ONU (suposta troca de petróleo por alimentos), os franceses logo ocuparam uma posição de destaque. Empresas francesas obtiveram contratos de US$ 3,5 bilhões a partir de 1996.
Segundo relato de senadores franceses que visitaram o Iraque em junho de 2001, essa vantagem resultou da "posição equilibrada" da França com relação ao governo de Saddam Hussein. Em termos de fluxos comerciais, a França foi o principal fornecedor do Iraque em 2000 e 2001.
Mesmo o esquema "humanitário" que justificou a flexibilização do embargo é enganoso. Ainda segundo dados europeus, a importação de medicamentos pelo Iraque a partir de 1996 não passou de 4%.
As principais exportações da UE para o Iraque foram de bens de capital (27,5%), veículos (12,4%), equipamentos elétricos (9,7%). Laticínios, açúcar e cereais somaram pouco mais de 25% das vendas ao país.
Em novembro de 2001, na Feira Internacional de Bagdá, 104 empresas francesas ocuparam um pavilhão de 2.500 m2.
As exportações de Austrália, Alemanha, China, Itália e Rússia respondem por 50% das compras do Iraque nos últimos anos. Com 12% das reservas mundiais de petróleo, o potencial de compra iraquiano não é desprezível. A divisão desse mercado futuro entre as potências mundiais está na ordem do dia.
Em dezembro, a agência alemã Deutsche Welle distribuiu uma reportagem publicada por uma revista de esquerda de Berlim, a "Tageszeitung", que teria obtido acesso ao texto completo da declaração iraquiana sobre armas à ONU: segundo o relatório, a Alemanha foi a principal fornecedora de armas ao Iraque até pelo menos 2001.
Nada menos que 80 entidades alemãs transferiram conhecimentos, equipamentos, substâncias e mesmo "instalações técnicas completas para o desenvolvimento de armas atômicas, químicas e biológicas".
A condenação política, moral e jurídica dessa guerra ao Iraque é hoje um consenso praticamente universal. Aparentemente, estamos diante do contraponto entre a força bruta e os mais elevados ideais humanitários.
Mas na prática há mais interesses econômicos, empresariais e geopolíticos entre a paz e a guerra do que supõem os manifestos públicos e as declarações oficiais.



Texto Anterior: Governo põe setor sob observação
Próximo Texto: Opinião econômica: Uma outra África
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.