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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma outra África
RUBENS RICUPERO
O visitante que desembarca em Adis Abeba ("Nova
Flor") não tem a sensação de se
encharcar de luz, como ocorre na
África tropical da nossa imaginação. As terras altas do norte e centro da Etiópia lembram mais a
paisagem andina de Cuzco. A diferença é a cor, de um bege avermelhado, não o cinza sujo de elefante de circo. A mais de 2.500
metros de altitude, o ar, cálido durante o dia, refresca à noite, obrigando todos a se cobrir, as mulheres enrolando-se desde a cabeça
em xales brancos, o que acentua
os ecos do oriente arábico, aqui
verdadeiramente próximo.
De fato, bem perto, do outro lado do mar Vermelho, branquejam as areias da Arábia, do Iêmen, não longe de Israel, das ruínas de Nínive e Babilônia. Tudo,
a principiar pelas montanhas
enrugadas, tem o ar de uma velhice bíblica, de um planeta cansado
do impacto de meteoritos e crateras. A profunda falha geológica
do vale do Rift se estende até o
Quênia e a Tanzânia, ao sul. Desde Lucy, a distante mãe africana
de todos nós, os principais restos
fossilizados dos primeiros hominídeos foram encontrados ao longo desse cânion. Terá sido aqui
que tudo começou, será esse o Jardim do Éden impregnado na memória atávica, o formigueiro de
bichos variados da Arca de Noé
da cratera de Ngoro-Ngoro, vaga
lembrança sepultada lá no fundo
do inconsciente coletivo?
Algo de misterioso paira sobre
esse chifre da África, entre o Egito
e a Ásia, entre o Congo e o Mediterrâneo. Como explicar de outra
forma a busca do fabuloso Preste
João, aventuras bizarras como a
de Pero da Covilhã, português
arabizante enviado em 1487 por
el-Rei para tentar a aliança com o
imperador da Etiópia? Disfarçado
em mercador, o intrépido viajante cruzou o Egito e chegou às
montanhas abissínicas. O imperador Eskander não se fiou nas
promessas lusitanas; nomeou-o
governador de distrito, deu-lhe
mulher, mas obrigou-o a ficar na
terra, onde morreu quase 30 anos
depois.
Minha última visita teve propósito mais prosaico. Com meu colega B.Y. Amoako, secretário-executivo da Comissão Econômica
da ONU para a África, participei
do mecanismo coordenador da
ajuda à iniciativa dos presidentes
africanos de criar uma espécie de
Plano Marshall para o continente. Intitulada Nepad ("New Economic Partnership for African
Development"), o esforço vem recebendo o apoio dos países avançados, como se viu pela presença
maciça dos ministros de cooperação de todas as nações ricas, sem
exceção. Com os principais ministros de finanças africanos, o Banco Mundial, o FMI, meu velho
amigo Michel Camdessus, agora
representante do G-8 (o Grupo
dos mais poderosos, inclusive a
Rússia), começamos a delinear,
em termos concretos, um efetivo
plano de ação. Dentro de uns dias,
em Paris, vamos avançar no exame de medidas de investimento. A
África necessita desse empurrão
internacional a fim de recuperar
a esperança.
Ao mesmo tempo, como único
brasileiro e latino-americano no
grupo, não pude deixar de sentir
uma ponta de melancolia pelo
contraste. Afinal, apesar de partir
de nível bem mais baixo e enfrentar problemas incomparavelmente mais graves, os africanos vêm
crescendo em média a 3% ao ano,
enquanto nós, no ano passado, só
alcançamos a duras penas a deprimente taxa de 0,3%! Segundo a
Cepal, o PIB per capita da região
caiu em 0,3% negativos nos cinco
últimos anos. Pela primeira vez, a
África começa a ter desempenho
melhor que a América Latina, e
aparentemente ninguém se comove.
A razão pela qual tudo se passa
em Adis é que a cidade se converteu na capital internacional do
continente africano, sediando
não só a Comissão da ONU como
a ex-Organização da Unidade
Africana, hoje transformada na
União Africana. Deve-se a escolha
a uma das singularidades da
Etiópia, a de ter sido a única parte
da África que nunca foi colônia
(salvo os seis anos de ocupação
militar italiana). Ilha de um cristianismo antiquíssimo num mar
islâmico e colonialista, a Etiópia
possui existência histórica continuada por bem mais de 2.000
anos. O império de Axum é considerado pelos arqueólogos como a
última das grandes civilizações da
antiguidade ainda por revelar,
faltando escavar 98% do sítio localizado. De lá saiu o obelisco que
Mussolini levou a Roma e a Itália
se apresta a devolver.
Como terá chegado ao atraso e
à miséria atuais país de tão antiga cultura, "museu de povos" com
mais de cem línguas, 1 milhão de
quilômetros quadrados e perto de
70 milhões de habitantes? Boa
parte da culpa cabe à degenerescência do império, em regime de
poder cada vez mais pessoal e arbitrário. A tendência atingiu o
paroxismo no último autocrata, o
Negus, cujo título (Ras, ou duque)
e nome original, Tafari, deu origem à seita jamaicana dos Rastafarian. Após liquidar o herdeiro
legítimo, Tafari foi coroado imperador sob o nome de Hailé Selassiê ("a Força da Trindade"). Rei
dos Reis, Eleito de Deus, Leão de
Judá, o imperador reinou meio século de forma só comparável aos
déspotas de Babilônia. Em "The
Emperor", Ryszard Kapuscinski
escreveu, inspirado no Negus, a
obra-prima definitiva sobre o poder absoluto, ilimitado e pessoal.
Há passagens espantosas, como o
depoimento do cortesão cuja função por dez anos era enxugar com
um pano de cetim os pés dos dignatários impassíveis, molhados
pelo pipi do Lulu do imperador!
Guardo desse cristianismo dos
primeiros tempos três imagens
que me acompanharão sempre. A
primeira, da procissão de São Miguel, em Lalibela, os sacerdotes e
diáconos transportando a Arca
da Aliança e o ícone do arcângelo,
dançando em roda com a multidão, ao som de címbalos, trombetas, tambores, sob pára-sóis de arco-íris. A segunda, no Mosteiro da
Fonte da Fé, em Axum, o mais antigo de todos, os sacerdotes cantando em Ge'ez e dando a comunhão a um menino e o sal a dois
bebês batizados, em meio a fervor
e espiritualidade que não me lembro de ter visto antes. A última, de
novo em Lalibela, numa das 11
igrejas totalmente escavadas na
rocha vermelha, a pequena jóia
da igreja de São Jorge, onde somos
contemplados por anjos de olhos
arregalados a partir dos afrescos
das paredes.
Na penumbra, o sacerdote asceta, que lia os textos sagrados, recebeu de um amigo meu, etíope, a
doação de um rico pára-sol. A fim
de expressar seu agradecimento,
foi buscar no tesouro a cruz de ouro maciço roubada por europeus e
restituída recentemente. Benzeu-nos com a cruz de Lalibela, que
beijamos três vezes. Nesse símbolo
venerado de uma fé de mais de
mil anos, envolvemos nosso pedido para que Deus finalmente socorra, na Etiópia e em toda a África, essa pobre gente cuja alegria e
força de viver são maiores que o
incomensurável peso da miséria
humana.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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