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São Paulo, domingo, 02 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Uma outra África

RUBENS RICUPERO

O visitante que desembarca em Adis Abeba ("Nova Flor") não tem a sensação de se encharcar de luz, como ocorre na África tropical da nossa imaginação. As terras altas do norte e centro da Etiópia lembram mais a paisagem andina de Cuzco. A diferença é a cor, de um bege avermelhado, não o cinza sujo de elefante de circo. A mais de 2.500 metros de altitude, o ar, cálido durante o dia, refresca à noite, obrigando todos a se cobrir, as mulheres enrolando-se desde a cabeça em xales brancos, o que acentua os ecos do oriente arábico, aqui verdadeiramente próximo.
De fato, bem perto, do outro lado do mar Vermelho, branquejam as areias da Arábia, do Iêmen, não longe de Israel, das ruínas de Nínive e Babilônia. Tudo, a principiar pelas montanhas enrugadas, tem o ar de uma velhice bíblica, de um planeta cansado do impacto de meteoritos e crateras. A profunda falha geológica do vale do Rift se estende até o Quênia e a Tanzânia, ao sul. Desde Lucy, a distante mãe africana de todos nós, os principais restos fossilizados dos primeiros hominídeos foram encontrados ao longo desse cânion. Terá sido aqui que tudo começou, será esse o Jardim do Éden impregnado na memória atávica, o formigueiro de bichos variados da Arca de Noé da cratera de Ngoro-Ngoro, vaga lembrança sepultada lá no fundo do inconsciente coletivo?
Algo de misterioso paira sobre esse chifre da África, entre o Egito e a Ásia, entre o Congo e o Mediterrâneo. Como explicar de outra forma a busca do fabuloso Preste João, aventuras bizarras como a de Pero da Covilhã, português arabizante enviado em 1487 por el-Rei para tentar a aliança com o imperador da Etiópia? Disfarçado em mercador, o intrépido viajante cruzou o Egito e chegou às montanhas abissínicas. O imperador Eskander não se fiou nas promessas lusitanas; nomeou-o governador de distrito, deu-lhe mulher, mas obrigou-o a ficar na terra, onde morreu quase 30 anos depois.
Minha última visita teve propósito mais prosaico. Com meu colega B.Y. Amoako, secretário-executivo da Comissão Econômica da ONU para a África, participei do mecanismo coordenador da ajuda à iniciativa dos presidentes africanos de criar uma espécie de Plano Marshall para o continente. Intitulada Nepad ("New Economic Partnership for African Development"), o esforço vem recebendo o apoio dos países avançados, como se viu pela presença maciça dos ministros de cooperação de todas as nações ricas, sem exceção. Com os principais ministros de finanças africanos, o Banco Mundial, o FMI, meu velho amigo Michel Camdessus, agora representante do G-8 (o Grupo dos mais poderosos, inclusive a Rússia), começamos a delinear, em termos concretos, um efetivo plano de ação. Dentro de uns dias, em Paris, vamos avançar no exame de medidas de investimento. A África necessita desse empurrão internacional a fim de recuperar a esperança.
Ao mesmo tempo, como único brasileiro e latino-americano no grupo, não pude deixar de sentir uma ponta de melancolia pelo contraste. Afinal, apesar de partir de nível bem mais baixo e enfrentar problemas incomparavelmente mais graves, os africanos vêm crescendo em média a 3% ao ano, enquanto nós, no ano passado, só alcançamos a duras penas a deprimente taxa de 0,3%! Segundo a Cepal, o PIB per capita da região caiu em 0,3% negativos nos cinco últimos anos. Pela primeira vez, a África começa a ter desempenho melhor que a América Latina, e aparentemente ninguém se comove.
A razão pela qual tudo se passa em Adis é que a cidade se converteu na capital internacional do continente africano, sediando não só a Comissão da ONU como a ex-Organização da Unidade Africana, hoje transformada na União Africana. Deve-se a escolha a uma das singularidades da Etiópia, a de ter sido a única parte da África que nunca foi colônia (salvo os seis anos de ocupação militar italiana). Ilha de um cristianismo antiquíssimo num mar islâmico e colonialista, a Etiópia possui existência histórica continuada por bem mais de 2.000 anos. O império de Axum é considerado pelos arqueólogos como a última das grandes civilizações da antiguidade ainda por revelar, faltando escavar 98% do sítio localizado. De lá saiu o obelisco que Mussolini levou a Roma e a Itália se apresta a devolver.
Como terá chegado ao atraso e à miséria atuais país de tão antiga cultura, "museu de povos" com mais de cem línguas, 1 milhão de quilômetros quadrados e perto de 70 milhões de habitantes? Boa parte da culpa cabe à degenerescência do império, em regime de poder cada vez mais pessoal e arbitrário. A tendência atingiu o paroxismo no último autocrata, o Negus, cujo título (Ras, ou duque) e nome original, Tafari, deu origem à seita jamaicana dos Rastafarian. Após liquidar o herdeiro legítimo, Tafari foi coroado imperador sob o nome de Hailé Selassiê ("a Força da Trindade"). Rei dos Reis, Eleito de Deus, Leão de Judá, o imperador reinou meio século de forma só comparável aos déspotas de Babilônia. Em "The Emperor", Ryszard Kapuscinski escreveu, inspirado no Negus, a obra-prima definitiva sobre o poder absoluto, ilimitado e pessoal. Há passagens espantosas, como o depoimento do cortesão cuja função por dez anos era enxugar com um pano de cetim os pés dos dignatários impassíveis, molhados pelo pipi do Lulu do imperador!
Guardo desse cristianismo dos primeiros tempos três imagens que me acompanharão sempre. A primeira, da procissão de São Miguel, em Lalibela, os sacerdotes e diáconos transportando a Arca da Aliança e o ícone do arcângelo, dançando em roda com a multidão, ao som de címbalos, trombetas, tambores, sob pára-sóis de arco-íris. A segunda, no Mosteiro da Fonte da Fé, em Axum, o mais antigo de todos, os sacerdotes cantando em Ge'ez e dando a comunhão a um menino e o sal a dois bebês batizados, em meio a fervor e espiritualidade que não me lembro de ter visto antes. A última, de novo em Lalibela, numa das 11 igrejas totalmente escavadas na rocha vermelha, a pequena jóia da igreja de São Jorge, onde somos contemplados por anjos de olhos arregalados a partir dos afrescos das paredes.
Na penumbra, o sacerdote asceta, que lia os textos sagrados, recebeu de um amigo meu, etíope, a doação de um rico pára-sol. A fim de expressar seu agradecimento, foi buscar no tesouro a cruz de ouro maciço roubada por europeus e restituída recentemente. Benzeu-nos com a cruz de Lalibela, que beijamos três vezes. Nesse símbolo venerado de uma fé de mais de mil anos, envolvemos nosso pedido para que Deus finalmente socorra, na Etiópia e em toda a África, essa pobre gente cuja alegria e força de viver são maiores que o incomensurável peso da miséria humana.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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