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São Paulo, domingo, 02 de março de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Existe América Latina?

RUBENS RICUPERO

Não se pretende aqui negar o óbvio: que, em termos de línguas, passado histórico, tradições culturais, problemas comuns, os povos da América Latina são menos diferentes entre si do que os da Ásia, Europa, África, onde às vezes um só país abriga cem idiomas e etnias distintas. A unidade básica não tem impedido, contudo, que se venha acentuando, nos últimos tempos, tendência à crescente diversificação entre o México, a América Central e o Caribe, de um lado, e a América do Sul, do outro. Para evitar repetir os nomes das regiões, falaremos simplesmente em norte e sul da América Latina.
A diferenciação vem se fazendo mais nítida em dois setores fundamentais: o grau de instabilidade política e a dependência econômica e comercial em relação aos Estados Unidos. No primeiro caso, o norte aparece mais calmo, menos instável que o sul, e essa mudança é recente. Até os anos 80, a América Central era o "homem doente" do continente, com o sandinismo no poder na Nicarágua, a guerrilha fortemente organizada em El Salvador e a guerra civil com tinturas de genocídio na Guatemala.
No Caribe anglófono, a Jamaica de Michael Manley era o foco das preocupações, embora as complicações aumentassem em Granada e outras ilhas. A República Dominicana se recuperava lentamente do longo reino de terror de Trujillo e da intervenção estrangeira de 1966, a tragédia haitiana provocava novas intervenções, a tensão não só de Washington mas de outros governos contra Cuba se mantinha em nível perigoso.
Completavam o quadro os temores americanos pela segurança do Canal do Panamá, devido à aproximação entre Noriega e Castro, bem como os sangrentos acontecimentos do Suriname, que, embora fisicamente na América do Sul, apresenta, como a Guiana, muitos traços caribenhos.
Lançando hoje o olhar a esse vasto espaço varrido pelos furacões, que se estende dos desertos mexicanos à "poeira de ilhas" do Caribe, o que se vê é uma placidez cálida, embalada por salsas e merengues, calipsos e reggae. O contraste não poderia ser maior com os roncos subterrâneos, as súbitas erupções antecipadoras de explosões vulcânicas, ao longo de todo o arco andino, da Venezuela à Colômbia, Bolívia, Peru, Equador até a Argentina ao sul. Pelo menos até agora, o fim da guerrilha na América Central aparentemente inaugurou fase de estabilidade menos precária do que a partida dos ditadores militares sul-americanos. Será ilusório, fugaz, um descompasso apenas entre norte e sul no eterno retorno do ciclo de turbulência?
À medida que se avança para o norte, aumenta, na mesma proporção, a intensidade da dependência econômica e comercial em relação aos EUA. O grupo mais setentrional -México, América Central, alguns caribenhos, mas incluindo também a Colômbia e a Venezuela (devido ao petróleo)- encontra no mercado americano o destinatário de um máximo de 88% a um mínimo de 48% de suas exportações (a porcentagem das importações é parecida).
Para o segundo grupo -Equador, Chile, Bolívia, Mercosul-, os EUA absorvem entre 38%, no caso do Equador, até apenas 8%, no Paraguai, do total das exportações (para o Brasil, tem oscilado nos últimos anos entre 24% e 19%). Os resultados são similares quando se examinam outros índices de dependência econômica: origem dos investimentos diretos, localização dos maiores credores da dívida, fontes de remessas financeiras de imigrantes, proveniência de turistas etc.
A primeira conclusão dessa análise é que a geografia ainda conta e muito, apesar de tudo o que se diz sobre a globalização e seu suposto efeito de anular a distância. Não é novidade que, desde os primórdios coloniais, os ianques sempre dispensaram, para o bem e para o mal, atenção prioritária ao seu entorno físico imediato, boa parte do qual -da Flórida e Porto Rico a Louisiana, Texas, Califórnia- compraram, anexaram ou associaram. A Doutrina Monroe, a política do "big stick", as guerras contra o México e a Espanha, as repetidas intervenções e ocupações na Nicarágua, Haiti, Cuba, Panamá tiveram basicamente por cenário essa extensões terrestres e marítimas do norte.
Nesse sentido, existe uma linha de continuidade histórica desse passado com o padrão recente. O "big stick" e as intervenções sobreviveram no apoio aos "contras", nas operações clandestinas de financiamento e orientação ao combate musculoso da guerrilha, chegando diretamente ao uso da força em Granada e no Panamá. Mais ao sul, exceto em episódios como a queda de Allende e, em razão das drogas, da guerrilha colombiana, os métodos são mais sutis.
A mesma diferença de padrão se manifesta em matéria econômica. Compare-se, por exemplo, a ajuda pronta, maciça e eficaz com que se socorreu o México na crise da "tequila" com a indiferença e frieza diante das convulsões agônicas da Argentina. Se as invasões de Granada e Panamá constituem eco distante do "big stick", em termos mais benignos, a política da "boa vizinhança" ou a Aliança para o Progresso reaparecem na Alca. Tampouco é surpresa que esta tenha começado pelo México (Nafta) e o Caribe ("Caribbean Basin Initiative") e que as ofertas tarifárias americanas estabeleçam uma sábia dosagem descendente, favorecendo primeiro os caribenhos, depois os centro-americanos (com os quais já estão negociando acordo separado), um pouco menos os andinos para atingir, na rabeira, os sulistas. Nada mais lógico pela geografia e a história.
A segunda e mais relevante conclusão é que a diversificação é real e crescente, mas é sobretudo de grau, não de essência. Ela se processa dentro do padrão comum, que é a dependência geral em relação aos EUA. O que dá unidade irredutível à América Latina e ao Caribe é a forma de inserção no mundo. No passado, como colônias de exploração, fornecedoras de produtos primários aos mercados internacionais; no presente, como economias em larga medida ainda dependentes da exportação de commodities e da importação de poupança externa.
Situando-se na área direta da afirmação da hegemonia americana, a região terá de redefinir o modo como se relaciona com os EUA, se quiser reformular em termos qualitativos sua inserção global. Basta atentar nos índices de pobreza, indigência, concentração de renda, uniformemente insatisfatórios, para constatar que nenhum desses países teve pleno êxito em mudar o patamar qualitativo da inserção. É essa deficiência comum que permite continuar a afirmar, apesar da diferenciação, a fundamental unidade da América Latina como problema à espera de solução.


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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