São Paulo, domingo, 02 de abril de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA
A vida da memória

RUBENS RICUPERO
Do terraço que domina a baía, desce até o mar o casario banhado a cal que deu a essa cidade o nome de Argel, "a branca". Não longe, está o liceu de onde Camus olhava as águas turquesas e respirava o jasmim do começo de primavera friorenta.
Vim de Túnis e há uma semana estou mergulhado no profundo poço da memória, onde as camadas levam nomes prestigiosos; Cartago, Hipona, Fez, Marrakech, Argel. Após três semanas do calor pegajoso do Sudeste da Ásia, em meio a monges de hábito laranja, templos de Buda em vermelho e ouro, é quase um choque encontrar-se no miolo alvo da "casbak", entrar nos cafés de muros de azulejos onde homens barbudos, muitos de fez ou turbante, aspiram o narguilé e ouvir os versículos do Corão cantados do alto dos minaretes.
É, pode ser que a globalização ameace afogar o mundo, mas o bicho-homem continua a apegar-se a sua diversidade em todos os tamanhos, cores, línguas e comidas. O único traço comum na Argélia e Tunísia, na Tailândia ou China, é o desejo do desenvolvimento pleno, corpo e espírito.
Nunca falei nos artigos do que faço quando ando pelo mundo. É o que também fazem meus companheiros da Unctad, uma espécie de clínica do desenvolvimento. Na Tunísia, país de 10 milhões de habitantes, crescendo entre 5% e 6%, com êxito no turismo, na exportação de têxteis, o problema é preparar-se para 2007, quando entra em pleno vigor o acordo com a União Européia para abolir todas as barreiras de alfândega. Nossa ajuda é para atrair investimentos e diversificar as exportações.
Na Tailândia, participamos da fundação de um instituto para formar negociadores de acordos de comércio e investimento, não só para os "tigres asiáticos", mas para os países pobres da região: Laos, Camboja, Vietnã, Myanma. Em alguns lugares, colaboramos na modernização das alfândegas, na gestão da dívida; em outros, treinamos jovens donos de pequenas empresas.
A Argélia, rica em petróleo e gás (98% das exportações), manteve por muito tempo a economia quase toda estatal, como no Leste Europeu. De 10 milhões de habitantes na Independência, saltou para 30, com espantoso índice de desemprego entre 24% e 30%. Depois de pagar terrível tributo de sangue na luta contra a dominação colonial, afundou em monstruoso pesadelo de massacres e terrorismo de que está a emergir graças à coragem e à sabedoria do presidente Bouteflika. Quer abrir-se para o mundo, negociar para entrar na Organização Mundial do Comércio, iniciar acordos regionais com os vizinhos, com a União Européia. Vim para definir com o presidente e os ministros um programa para formar gente capacitada a formular e negociar políticas de comércio e investimento.
É isso o desenvolvimento: um processo contínuo de aprendizagem. Aprender não só a produzir, a vender, a competir, mas saber como gerir sistemas sociais complexos. A economia certamente, mas de igual maneira o meio ambiente, os direitos humanos, a Justiça, as universidades, as orquestras e os museus, saber fazer bem tudo o que tem a ver com a vida social.
Nesse caminho nada é irreversível. Talvez em nenhum outro lugar se pode sentir o caráter sempre ameaçado e precário da civilização como na África do Norte de Cartago, berço de uma primeira globalização, celeiro de Roma. Andei por aqui sob a sombra de santo Agostinho, cuja mãe era berbere e nasceu no que é agora a Argélia, perto da Tunísia. Um dos raros homens do mundo greco-romano que nos emociona como se fosse um contemporâneo. Morreu quando morria o seu mundo, com sua diocese de Hipona assediada pelos vândalos, os quais, embora fazendo jus ao nome, aguardaram que ele expirasse antes de dar assalto à cidade, poupando-lhe a biblioteca.
Da colina que dá para o golfo de Cartago, na luz incomparável do crepúsculo do Mediterrâneo, contemplei o porto circular de onde partiam as trirremes de guerra. Lembrei-me dos versos de Leopardi em "La sera del di di festa", em que o poeta vê como a noite sepulta a agitação festiva e pergunta: "Onde está agora o ruído daqueles povos antigos? Onde o grito dos nossos avós famosos, e o grande império daquela Roma, e as armas e o alarido que devastaram a terra e o oceano? Tudo é paz e silêncio, tudo no mundo repousa e já sobre eles mais ninguém discute".
Ou, melhor ainda, como escreveu Agostinho: "A verdadeira vida é a memória" ("Magna Vis est Memoriae").



Rubens Ricupero, 63, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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