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OPINIÃO ECONÔMICA
A vida da memória
RUBENS RICUPERO
Do terraço que domina a baía,
desce até o mar o casario banhado a cal que deu a essa cidade o
nome de Argel, "a branca". Não
longe, está o liceu de onde Camus
olhava as águas turquesas e respirava o jasmim do começo de primavera friorenta.
Vim de Túnis e há uma semana
estou mergulhado no profundo
poço da memória, onde as camadas levam nomes prestigiosos;
Cartago, Hipona, Fez, Marrakech, Argel. Após três semanas do
calor pegajoso do Sudeste da
Ásia, em meio a monges de hábito
laranja, templos de Buda em vermelho e ouro, é quase um choque
encontrar-se no miolo alvo da
"casbak", entrar nos cafés de muros de azulejos onde homens barbudos, muitos de fez ou turbante,
aspiram o narguilé e ouvir os versículos do Corão cantados do alto
dos minaretes.
É, pode ser que a globalização
ameace afogar o mundo, mas o
bicho-homem continua a apegar-se a sua diversidade em todos os
tamanhos, cores, línguas e comidas. O único traço comum na Argélia e Tunísia, na Tailândia ou
China, é o desejo do desenvolvimento pleno, corpo e espírito.
Nunca falei nos artigos do que
faço quando ando pelo mundo. É
o que também fazem meus companheiros da Unctad, uma espécie de clínica do desenvolvimento.
Na Tunísia, país de 10 milhões de
habitantes, crescendo entre 5% e
6%, com êxito no turismo, na exportação de têxteis, o problema é
preparar-se para 2007, quando
entra em pleno vigor o acordo
com a União Européia para abolir todas as barreiras de alfândega. Nossa ajuda é para atrair investimentos e diversificar as exportações.
Na Tailândia, participamos da
fundação de um instituto para
formar negociadores de acordos
de comércio e investimento, não
só para os "tigres asiáticos", mas
para os países pobres da região:
Laos, Camboja, Vietnã, Myanma. Em alguns lugares, colaboramos na modernização das alfândegas, na gestão da dívida; em
outros, treinamos jovens donos de
pequenas empresas.
A Argélia, rica em petróleo e gás
(98% das exportações), manteve
por muito tempo a economia
quase toda estatal, como no Leste
Europeu. De 10 milhões de habitantes na Independência, saltou
para 30, com espantoso índice de
desemprego entre 24% e 30%. Depois de pagar terrível tributo de
sangue na luta contra a dominação colonial, afundou em monstruoso pesadelo de massacres e
terrorismo de que está a emergir
graças à coragem e à sabedoria
do presidente Bouteflika. Quer
abrir-se para o mundo, negociar
para entrar na Organização
Mundial do Comércio, iniciar
acordos regionais com os vizinhos, com a União Européia. Vim
para definir com o presidente e os
ministros um programa para formar gente capacitada a formular
e negociar políticas de comércio e
investimento.
É isso o desenvolvimento: um
processo contínuo de aprendizagem. Aprender não só a produzir,
a vender, a competir, mas saber
como gerir sistemas sociais complexos. A economia certamente,
mas de igual maneira o meio ambiente, os direitos humanos, a
Justiça, as universidades, as orquestras e os museus, saber fazer
bem tudo o que tem a ver com a
vida social.
Nesse caminho nada é irreversível. Talvez em nenhum outro lugar se pode sentir o caráter sempre ameaçado e precário da civilização como na África do Norte de
Cartago, berço de uma primeira
globalização, celeiro de Roma.
Andei por aqui sob a sombra de
santo Agostinho, cuja mãe era
berbere e nasceu no que é agora a
Argélia, perto da Tunísia. Um dos
raros homens do mundo greco-romano que nos emociona como
se fosse um contemporâneo. Morreu quando morria o seu mundo,
com sua diocese de Hipona assediada pelos vândalos, os quais,
embora fazendo jus ao nome,
aguardaram que ele expirasse
antes de dar assalto à cidade,
poupando-lhe a biblioteca.
Da colina que dá para o golfo de
Cartago, na luz incomparável do
crepúsculo do Mediterrâneo, contemplei o porto circular de onde
partiam as trirremes de guerra.
Lembrei-me dos versos de Leopardi em "La sera del di di festa",
em que o poeta vê como a noite
sepulta a agitação festiva e pergunta: "Onde está agora o ruído
daqueles povos antigos? Onde o
grito dos nossos avós famosos, e o
grande império daquela Roma, e
as armas e o alarido que devastaram a terra e o oceano? Tudo é
paz e silêncio, tudo no mundo repousa e já sobre eles mais ninguém discute".
Ou, melhor ainda, como escreveu Agostinho: "A verdadeira vida é a memória" ("Magna Vis est
Memoriae").
Rubens Ricupero, 63, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é
autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora
Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.
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