São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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LUÍS NASSIF

O "laranja" de barba preta

No domingo passado, contei alguns episódios do épico que foi a greve dos jornalistas de 1979. Depois do episódio da praça do Pacaembu, com a moral alquebrada, às 2h do dia seguinte cheguei ao piquete do "Estado de S.Paulo".
Nem bem tinha chegado, apareceu a Veraneio do Dops e dois colegas saíram aos berros. "Companheiros, temos ficha na polícia, quem de vocês pode se apresentar como responsável pelo nosso carro?" Quem se apresentou? O "laranja" aqui, sem ter a mínima idéia do crime que o carro tinha cometido.
O investigador do Dops era o agente Lalau, que eu passara azucrinando duas noites antes, no piquete da Folha. Seus olhos brilharam quando me viu. Fui detido e levado para a delegacia no banco de trás, ao lado do motorista de um carro da Folha. O Lalau, no rádio do carro, dizia: "Atenção, chegando com o "laranja" na delegacia de Santo Amaro".
Prestei depoimento rápido e fui informado que seria levado para o Dops. Eram oito da matina. Pedi para avisar minha mulher. Um investigador me acompanhou. Liguei e, em oito anos de namoro, quatro de casamento, pela primeira vez ela me cobriu de palavrões e desligou o telefone. Ao lado, o investigador corpulento foi solidário: "Olha aqui, rapaz, te vi no piquete da Folha e você era um dos poucos educados. Vou quebrar o seu galho". Pegou o telefone e comunicou: "Minha senhora, aqui é uma autoridade policial. Faça o favor de ouvir o seu marido". Agradeci a sua ajuda e tentei demovê-la da idéia de ir ao Dops. Em vão.
Ela foi, bateu na porta, o carcereiro abriu. Ela se apresentou como minha mulher. O carcereiro: "Tem algum político ou padre aí? Não? Então pode entrar". Os "políticos" e "padres" eram o senador Franco Montoro, dom Paulo Evaristo Arns, Eduardo Suplicy e outros reforços convocados pelo sindicato. E o porteiro era mais poderoso.
Primeiro, me levaram para tomar café com o motorista da Folha e só aí soube da história. Solidário com a greve, ele havia combinado com dois jornalistas simular um assalto ao caminhão dele. No meio da transferência dos jornais para o carro apareceu um vigia noturno e deu o alarme. Ele não teve jeito senão dar a descrição do carro para a polícia. Mas mudou a descrição do jornalista. "Ele tem barba ruiva, mas falei para a polícia que a barba era preta", disse-me. Agradeci à solidariedade para com nossa causa e apontei para a minha cara. Ele entendeu e pediu desculpas: minha barba era preta.
Às 10h, começou o interrogatório. Quanto tempo de profissão? Oito anos. "Como foi seu dia ontem?" "Às 11h fui até o sindicato." "Quem era do comando da greve?" "Não conheço ninguém." E o delegado para o escrivão: "Escreve aí: Apesar de oito anos na profissão, não conhece ninguém do comando de greve". Às 17h fui para o Bar do Alemão. Com quem? Uma amiga me levou. Às 22h fui para o Quincas Borba. Com quem? Outra amiga me levou.
Aí os delegados começaram a apertar o interrogatório. Um berrava: "É crime comum, dez anos de cana". O outro rebatia: "É terrorismo, 14 anos". E eu, com cara de saco cheio, com sono, ressaca. De repente, irrompe em pânico na sala o advogado do sindicato, o Luiz Eduardo Greenhalgh. "Pelo amor de Deus, crime comum, não!" Nem terminou a frase quando minha mulher saiu da sala ao lado, com taquicardia, amparada pelo delegado Romeu Tuma. Esperei sair e esbravejei com os dois delegados: "Qual é a de vocês? Tentar me assustar, tudo bem, mas minha mulher aí do lado ouvindo tudo!".
Aí um deles me disse algo que guardei até hoje: "Olha aqui, rapaz, você está de um lado da mesa, nós do outro. Mas quero te encontrar em um bar qualquer e poder te pagar um café. Então, um conselho: aproveita que sua mulher saiu e tire do depoimento essas histórias de que ganhou carona de amigas, que ainda vai prejudicar seu casamento".
Descobri naquela hora que, acima do bem e do mal, das ideologias e das corporações, de amor de mãe e de avó, nada é mais forte neste mundo que a solidariedade masculina.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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