São Paulo, domingo, 02 de junho de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Globalização e desenvolvimento

ALOIZIO MERCADANTE

A cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) acaba de divulgar um estudo -cujo título encabeça este artigo- extremamente importante e oportuno para o entendimento dos problemas que afetam as economias da região e das questões centrais envolvidas em um padrão alternativo de desenvolvimento e inserção internacional.
O estudo projeta a análise do processo de globalização em um arco de 130 anos, distinguindo três fases: a primeira, de 1870 até 1913, marcada por uma grande expansão do comércio e pela mobilidade internacional do capital e da mão-de-obra (é a época das grandes migrações, que envolveram cerca de 10% da população mundial); a segunda, após um período de retração das relações econômicas internacionais associada às duas guerras mundiais e à crise dos anos 30, vai do pós-guerra (1945/ 50) até 1973, caracterizando-se pela reduzida mobilidade tanto do capital como da mão-de-obra, que coexistem com um ciclo de notável expansão do comércio de manufaturas entre os países desenvolvidos; finalmente, a terceira fase engloba o último quartel do século 20, que tem na expansão e elevada mobilidade dos fluxos de capital, na integração à escala mundial dos sistemas de produção das empresas transnacionais e na homogeneização dos modelos de desenvolvimento suas características principais.
É interessante observar como esse processo foi acompanhado, particularmente em sua terceira fase, por uma crescente concentração e polarização da renda e da riqueza mundiais. Em 1820, por exemplo, a relação entre o PIB por habitante da região mais desenvolvida do mundo -à época a Europa ocidental- e o da mais pobre -a África- era de aproximadamente três vezes. Cinquenta anos depois, essa relação já havia aumentado para 5,5 vezes, passando para 11,8 vezes em 1973 e para 19,1 vezes em 1998.
O caso da América Latina -e, em particular, o do Brasil- é igualmente ilustrativo. Entre 1870 e 1973, a relação entre o produto por habitante da região mais rica -as colônias inglesas de povoamento lideradas pelos Estados Unidos- e o da América Latina se manteve praticamente constante, em torno de 3,4 vezes. Mas, entre 1973 e 1998, aumenta para 4,5 vezes. Ou seja, a expansão e a liberalização dos fluxos de capital e a homogeneização das políticas adotadas nos países da região sob a égide do pensamento neoliberal ampliaram a brecha entre a região e os países mais desenvolvidos, que, aparentemente, foram os principais beneficiários da expansão da produção e do comércio verificadas nesse período.
O quadro acima torna mais claro esse processo. Como se pode observar, a América Latina e, especialmente, o Brasil, expandiram-se fortemente tanto durante a fase de retração do processo de internacionalização da economia mundial (1913/1950) como no que a Cepal denomina a segunda fase da globalização (1950/1973), quando a vigência do acordo de Bretton Woods limitava a mobilidade internacional dos fluxos de capital. O caso do Brasil é dramático: de 1913 a 1973, o país cresceu a uma velocidade mais de duas vezes superior à dos Estados Unidos. A partir de então, a situação se inverteu e, no período de 1990 a 1998, a perda de dinamismo da economia brasileira fez com que, pela primeira vez em quase cem anos, o país crescesse menos do que o conjunto da América Latina.
Os poucos países não-desenvolvidos que mostraram desempenho positivo durante a última fase foram o Japão, cujo crescimento entre 1973 e 1998 foi espetacular, e os demais países asiáticos, que reduziram acentuadamente a distância em relação às regiões mais desenvolvidas. A tragédia africana expressa-se na estagnação da renda por habitante da região nesse período, devastada pelo capital espoliativo e pelas guerras que inviabilizaram o desenvolvimento do processo de descolonização.
Essa tendência à ampliação das disparidades de renda entre países e regiões foi acompanhada pelo aumento das desigualdades dentro de cada país, particularmente no último período, e por uma queda na participação da região nas exportações mundiais. Esta, que se havia expandido sustentadamente desde 1870, declinou de 9,3% em 1950 para 3,9% em 1973 e para 3,5% em 1990, recuperando-se a partir de então e chegando a 5% em 1998 devido basicamente às exportações mexicanas.
Segundo a Cepal, a evolução divergente dos países mais ricos e dos de nível de renda médio ou baixo está associada a três assimetrias fundamentais: a concentração do progresso técnico nos países desenvolvidos e o caráter lento, irregular e crescentemente mais oneroso de sua propagação aos países periféricos; a maior vulnerabilidade macroeconômica dos países em desenvolvimento face aos choques externos, associada à sua menor margem para adotar políticas anticíclicas dada a gravitação e o comportamento dos mercados financeiros, que tendem a potencializar o ciclo e a exigir dos governos políticas pró-cíclicas; e o contraste entre a elevada mobilidade do capital e as restrições impostas aos deslocamentos internacionais de mão-de-obra. Agregue-se a isso que a construção das instituições do mercado global e seus padrões normativos, típicos da terceira fase do processo de globalização, obedecem a uma matriz própria dos países desenvolvidos, favorecendo a concentração, nesses países, dos benefícios da expansão do comércio internacional e do progresso técnico.
Diante desse quadro, a Cepal propõe uma agenda de construção de uma nova ordem global baseada em três objetivos essenciais: fornecer bens públicos globais, como a democracia, a paz, a segurança, o desarmamento, a justiça internacional, entre outros; corrigir as assimetrias internacionais; e incorporar firmemente uma agenda internacional baseada nos direitos.
Como se vê, uma agenda muito mais rica, atual e necessária do que a mesmice dos compromissos com as chamadas "políticas de mercado livre", exigidos pelas grandes corporações financeiras e seus agentes políticos nacionais e internacionais.


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.
Internet: www.mercadante.com.br

E-mail -
dep.mercadante@camara.gov.br



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