São Paulo, domingo, 02 de outubro de 2005

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Governança pública, moralidade fiscal

LUCIANO COUTINHO

A fragilização do Estado começou a se agravar nos anos 80 com as seqüelas da crise da dívida externa. O Plano Collor, no início dos anos 90, fez um saneamento doloroso da posição fiscal-financeira através do congelamento dos ativos e da imposição de imposto extraordinário. Infelizmente, a implantação do Plano Real implicou novo ciclo altamente deletério de fragilização financeira do Estado. No primeiro governo FHC, combinou-se uma taxa real de juros média de mais de 20% ao ano com déficits fiscais elevados. A dívida interna escalou. No segundo governo, sob o impacto das crises cambiais das economias emergentes, os juros persistiram elevados e o BC emitiu grande volume de dívida dolarizada. Os recursos advindos da privatização foram dissipados e uma escalada tributária impôs à sociedade uma carga de mais dez pontos de porcentagem do PIB.
Muito embora a taxa real de juros extraordinariamente alta tenha sido fator-chave de propulsão da dívida, uma forte expansão do custeio do setor público também contribuiu para a deterioração financeira do Estado. Os dispêndios federais de custeio subiram de 21% do PIB no início dos anos 90 para 28% em 2004. Paralelamente, e lamentavelmente, os dispêndios de investimento caíram de 4% para 0,7% no período. As transferências fiscais para pagar juros custaram, em média, 5% do PIB. Esse é o retrato dramático da debilitação do Estado brasileiro.
Sem absolver a insensata política de juros reais elevados e sem perdoar a queda dos investimentos, cabe a pergunta: a elevação dos gastos resultou em melhoria substantiva das políticas sociais, especialmente de saúde, educação, assistência e saneamento? A resposta é negativa. O subdesenvolvimento do controle democrático do Estado, expresso na fragilidade do sistema de governança pública, enseja práticas de favoritismo, cooptação política, corrupção e freqüente predação dos recursos fiscais por parte de interesses privilegiados. A Lei de Responsabilidade Fiscal, ao estabelecer um efetivo regime de controle do endividamento público representou um avanço. Mas a LRF tem sido pouco eficaz enquanto indutora de melhorias substanciais da qualidade e da racionalidade alocativa do gasto (em termos de eficiência e de eqüidade). Há, portanto, diante de nós, o duplo desafio de restaurar a higidez fiscal-financeira do Estado e, simultaneamente, aprofundar sistemas transparentes e participativos de governança pública. Os recursos orçamentários precisam se traduzir em benefícios diretos e, o quanto possível, universais aos pobres e excluídos. A luta contra o desvio e o desperdício do dinheiro público não é só fundamental para a regeneração fiscal do Estado, mas, também, para consolidar a democracia social.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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