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OPINIÃO ECONÔMICA
A miséria do Brasil e a do mundo
RUBENS RICUPERO
Diante de interminável fila
na pequena e próspera cidade sulina em que mora, conhecido meu espantou-se ao descobrir
que era para obter o cartão magnético do Bolsa-Escola, cujo valor
lhe parecia irrisório para a região.
Indagou a uma senhora: "Vale a
pena esse esforço para receber R$
15 por mês?". A resposta foi: "Tenho três filhos e receberei R$ 45.
Meu marido está desempregado.
Como é época de férias, não terei
de comprar já o material escolar,
e esse dinheiro é a diferença entre
passar fome e comer um pouco
melhor".
O pesquisador amador começou a entender por que, ao fim de
uma década em que a renda média do brasileiro encolheu a enormidade de 10% e o empobrecimento generalizou-se de norte a
sul, o dinheiro do caderno tem às
vezes de servir para comprar comida.
No contexto da França, incomparavelmente superior ao nosso
por qualquer critério, Pierre
Bourdieu dirigiu em 1993 obra
coletiva de quase mil páginas, "La
Misère du Monde", inquérito sobre o sofrimento social que, apesar do nome, se concentra na
França. Empregando técnicas
quase jornalísticas de entrevistas,
mas sabendo formular as perguntas certas, os organizadores deram a palavra aos que sofrem em
silêncio e nunca se manifestam
devido à miséria. Não só as "misérias de condição", particulares
a uma classe, mas também as
"misérias de posição", próprias de
indivíduos no mais baixo da escala de um setor. De acordo com o
autor do projeto, tratava-se de saber escutar, de levar as pessoas a
dizer coisas que nem elas sabiam
que sabiam, o velho truque de Sócrates.
Bourdieu não ficou só na pesquisa e na análise. Nunca mais
foi o mesmo. Começou a engajar-se ao lado de grevistas, imigrantes
sem documentos, sem-teto, desempregados, opositores à globalização neoliberal. Em 1998, confessou em entrevista: "Quanto
mais envelheço, mais me sinto
compelido ao crime" (de rebeldia,
entenda-se). Explicou: "A partir
de agora, passei a transgredir limites que me havia prometido
respeitar".
Nesses dois pontos -a prioridade absoluta ao sofrimento causado pela sociedade e a luta para
aliviar a miséria humana- resume-se, a meu ver, o melhor da herança do sociólogo desaparecido
em 24 de janeiro. A paixão devoradora pela justiça e pela igualdade, no fundo inseparáveis, insere Bourdieu na longa linha de intelectuais franceses, às vezes excessivos, que não ficaram indiferentes perante a dor dos homens:
Foucault, na reforma das prisões
e dos manicômios, Sartre, antes
deles, Zola, os filósofos da Revolução.
É paixão rara, infrequente nesses nossos trópicos da luxúria e da
cobiça, mais chegados aos pecados e vícios do que às verdadeiras
paixões, no sentido etimológico
do grego "pathos", sofrimento,
dor. Os nossos românticos comoviam-se com o índio estilizado e
ignoravam as massas de escravos
de carne e osso. A campanha abolicionista melhorou a situação,
mas por pouco tempo. Nunca tivemos o empenho sustentado, de
todas as horas, contra a extrema
desigualdade que nos separa de
nossos compatriotas e semelhantes, se é que os consideramos mesmo como tais. Menos ainda a força de caráter com que Zola, Sartre
e Bourdieu transgrediram normas para promover a justiça e a
igualdade.
Utilizando a sociologia como
"esporte de combate", Bourdieu
contestou, em vez de justificar como fizeram outros, instituições
centrais na vida contemporânea.
Denunciou o papel da educação
na perpetuação das desigualdades, os mecanismos da dominação masculina, desmistificou a
submissão do jornalismo à lógica
do dinheiro, o nefasto jogo de manipulação e embrutecimento da
TV, a privatização da cultura. De
seus conceitos, um dos que melhor iluminam a realidade brasileira é o de violência ou dominação simbólica, pela qual as pessoas interiorizam e legitimam a
opressão de que são vítimas ao
aplicar às relações de dominação
categorias construídas a partir do
ponto de vista dos dominantes.
Não tenho a pretensão de conhecer a difícil obra sociológica
de Bourdieu. Limitei-me a extrair
do seu combate o exemplo que
nos lega a nós, membros de sociedade incomensuravelmente mais
iníqua e desigual que a francesa.
Pessimista na lucidez, o sociólogo
afirmava, no entanto: "Aquilo
que o mundo social fez, armado
de conhecimento o mundo social
pode desfazer". Sua razão de viver era lutar contra o sofrimento
social onde quer que estivesse. Poderia haver melhor razão de viver
para quem nasceu no Brasil?
Admitiu que, se tivesse de escolher, preferiria ser discípulo de
Pascal, não de Marx. Pouco antes
de morrer, aos 39 anos, Pascal só
se queixava de nada ter feito pelos
pobres. Como lhe dissessem que
não tinha bens a distribuir, prometeu que, se se salvasse, doaria
todo o seu tempo ao serviço dos
pobres. "Sinto pena e confusão",
confessou à sua irmã Gilberte, "de
ser tão bem assistido, enquanto
uma infinidade de pobres que estão piores do que eu não têm o
mínimo necessário". Suplicou
que trouxessem à sua casa um
doente pobre para que lhe ministrassem o mesmo tratamento que
a ele. Não se encontrou ninguém
que pudesse ser transportado naquela hora. Narra a irmã: "Como
viu que não podia ter com ele um
pobre em casa, pediu-me para levá-lo ao hospital dos incuráveis
porque tinha grande desejo de
morrer na companhia dos pobres".
Em "Méditations pascaliennes", Bourdieu reata com a inspiração de Pascal, escrevendo:
"Morre-se sozinho. É preciso, pois,
fazer como se estivéssemos sós; será então que edificaríamos casas
suntuosas? Buscar-se-ia a verdade sem hesitar, e, se o recusássemos, mostraríamos estimar mais
a estima dos homens que a busca
da verdade".
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail - rubensricupero@hotmail.com
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