São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

A miséria do Brasil e a do mundo

RUBENS RICUPERO

Diante de interminável fila na pequena e próspera cidade sulina em que mora, conhecido meu espantou-se ao descobrir que era para obter o cartão magnético do Bolsa-Escola, cujo valor lhe parecia irrisório para a região. Indagou a uma senhora: "Vale a pena esse esforço para receber R$ 15 por mês?". A resposta foi: "Tenho três filhos e receberei R$ 45. Meu marido está desempregado. Como é época de férias, não terei de comprar já o material escolar, e esse dinheiro é a diferença entre passar fome e comer um pouco melhor".
O pesquisador amador começou a entender por que, ao fim de uma década em que a renda média do brasileiro encolheu a enormidade de 10% e o empobrecimento generalizou-se de norte a sul, o dinheiro do caderno tem às vezes de servir para comprar comida.
No contexto da França, incomparavelmente superior ao nosso por qualquer critério, Pierre Bourdieu dirigiu em 1993 obra coletiva de quase mil páginas, "La Misère du Monde", inquérito sobre o sofrimento social que, apesar do nome, se concentra na França. Empregando técnicas quase jornalísticas de entrevistas, mas sabendo formular as perguntas certas, os organizadores deram a palavra aos que sofrem em silêncio e nunca se manifestam devido à miséria. Não só as "misérias de condição", particulares a uma classe, mas também as "misérias de posição", próprias de indivíduos no mais baixo da escala de um setor. De acordo com o autor do projeto, tratava-se de saber escutar, de levar as pessoas a dizer coisas que nem elas sabiam que sabiam, o velho truque de Sócrates.
Bourdieu não ficou só na pesquisa e na análise. Nunca mais foi o mesmo. Começou a engajar-se ao lado de grevistas, imigrantes sem documentos, sem-teto, desempregados, opositores à globalização neoliberal. Em 1998, confessou em entrevista: "Quanto mais envelheço, mais me sinto compelido ao crime" (de rebeldia, entenda-se). Explicou: "A partir de agora, passei a transgredir limites que me havia prometido respeitar".
Nesses dois pontos -a prioridade absoluta ao sofrimento causado pela sociedade e a luta para aliviar a miséria humana- resume-se, a meu ver, o melhor da herança do sociólogo desaparecido em 24 de janeiro. A paixão devoradora pela justiça e pela igualdade, no fundo inseparáveis, insere Bourdieu na longa linha de intelectuais franceses, às vezes excessivos, que não ficaram indiferentes perante a dor dos homens: Foucault, na reforma das prisões e dos manicômios, Sartre, antes deles, Zola, os filósofos da Revolução.
É paixão rara, infrequente nesses nossos trópicos da luxúria e da cobiça, mais chegados aos pecados e vícios do que às verdadeiras paixões, no sentido etimológico do grego "pathos", sofrimento, dor. Os nossos românticos comoviam-se com o índio estilizado e ignoravam as massas de escravos de carne e osso. A campanha abolicionista melhorou a situação, mas por pouco tempo. Nunca tivemos o empenho sustentado, de todas as horas, contra a extrema desigualdade que nos separa de nossos compatriotas e semelhantes, se é que os consideramos mesmo como tais. Menos ainda a força de caráter com que Zola, Sartre e Bourdieu transgrediram normas para promover a justiça e a igualdade.
Utilizando a sociologia como "esporte de combate", Bourdieu contestou, em vez de justificar como fizeram outros, instituições centrais na vida contemporânea. Denunciou o papel da educação na perpetuação das desigualdades, os mecanismos da dominação masculina, desmistificou a submissão do jornalismo à lógica do dinheiro, o nefasto jogo de manipulação e embrutecimento da TV, a privatização da cultura. De seus conceitos, um dos que melhor iluminam a realidade brasileira é o de violência ou dominação simbólica, pela qual as pessoas interiorizam e legitimam a opressão de que são vítimas ao aplicar às relações de dominação categorias construídas a partir do ponto de vista dos dominantes.
Não tenho a pretensão de conhecer a difícil obra sociológica de Bourdieu. Limitei-me a extrair do seu combate o exemplo que nos lega a nós, membros de sociedade incomensuravelmente mais iníqua e desigual que a francesa. Pessimista na lucidez, o sociólogo afirmava, no entanto: "Aquilo que o mundo social fez, armado de conhecimento o mundo social pode desfazer". Sua razão de viver era lutar contra o sofrimento social onde quer que estivesse. Poderia haver melhor razão de viver para quem nasceu no Brasil?
Admitiu que, se tivesse de escolher, preferiria ser discípulo de Pascal, não de Marx. Pouco antes de morrer, aos 39 anos, Pascal só se queixava de nada ter feito pelos pobres. Como lhe dissessem que não tinha bens a distribuir, prometeu que, se se salvasse, doaria todo o seu tempo ao serviço dos pobres. "Sinto pena e confusão", confessou à sua irmã Gilberte, "de ser tão bem assistido, enquanto uma infinidade de pobres que estão piores do que eu não têm o mínimo necessário". Suplicou que trouxessem à sua casa um doente pobre para que lhe ministrassem o mesmo tratamento que a ele. Não se encontrou ninguém que pudesse ser transportado naquela hora. Narra a irmã: "Como viu que não podia ter com ele um pobre em casa, pediu-me para levá-lo ao hospital dos incuráveis porque tinha grande desejo de morrer na companhia dos pobres".
Em "Méditations pascaliennes", Bourdieu reata com a inspiração de Pascal, escrevendo: "Morre-se sozinho. É preciso, pois, fazer como se estivéssemos sós; será então que edificaríamos casas suntuosas? Buscar-se-ia a verdade sem hesitar, e, se o recusássemos, mostraríamos estimar mais a estima dos homens que a busca da verdade".


Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).
E-mail - rubensricupero@hotmail.com


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