São Paulo, domingo, 03 de março de 2002

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OPINIÃO

Países ainda dominam o mundo

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Das maiores economias do mundo, 51 são empresas; apenas 49 são países. Os críticos da "globalização corporativa", alguns dos quais protestaram contra a reunião anual do Fórum Econômico Mundial em Nova York, se baseiam nesse suposto fato para justificar sua opinião de que os governos estão prostrados diante do poder descontrolado das grandes empresas.
Trata-se de uma ilusão paranóica. Os cálculos do tamanho relativo das empresas, sobre os quais tantas das alegações dos críticos da globalização dependem, vêm do Instituto de Estudos Políticos, uma organização de tendências esquerdistas sediada em Washington. Mas os números se baseiam em uma mancada monumental. Os autores do estudo, Sarah Anderson e John Cavanagh, computam o tamanho das empresas com base em seu faturamento, mas o das economias nacionais com base em seu Produto Interno Bruto (PIB).
No entanto, o PIB é uma medida de valor acrescentado, e não de vendas. Se computássemos todas as vendas em um país, terminaríamos com um número muito superior ao PIB. E obviamente estaríamos também contando em duplicata, triplicata ou mais.
Para tomarmos apenas um exemplo, a Bethlehem Steel vende cabos de aço para a Bridgestone, que vende pneus para a Ford, a qual por sua vez vende carros aos consumidores. Se os estatísticos que estudam a renda nacional somassem as vendas da Bethlehem Steel, Bridgestone e Ford, o aço seria computado três vezes. Em vez disso, computam o valor acrescentado pelas empresas envolvidas, ou seja a diferença entre seu faturamento de vendas e o custo dos insumos adquiridos fora da companhia.
Esse exemplo vem de um estudo preparado por Paul de Grauwe, da Universidade de Leuven, e Filip Camerman, do Senado belga, no qual as alegações empíricas dos inimigos das grandes empresas são demolidas. O que acontece, perguntam os autores, se as corporações passarem a ter seus resultados medidos pelo valor acrescentado, como ocorre com as economias nacionais? A resposta é que elas sofrem reduções de 70% a 80% em suas dimensões totais. Em 2000, as vendas da General Motors foram de US$ 185 bilhões, mas o valor acrescentado pela empresa foi de US$ 42 bilhões. As da Ford foram de US$ 170 bilhões, com valor acrescentado de US$ 47 bilhões; e as da Royal Dutch/Shell foram de US$ 149 bilhões, mas com valor acrescentado de apenas US$ 36 bilhões. Os críticos argumentam que, em 1999, 14 das 50 maiores economias e 51 das 100 maiores economias eram empresas. Na verdade, só duas das dez maiores economias e 37 das 100 maiores, sob o critério do valor adicionado, são empresas. Críticos alegam que a General Motors é maior que a Dinamarca. Mas sob os critérios corretos, a economia dinamarquesa é mais de três vezes maior que a GM. Até Bangladesh tem economia maior do que a GM.

Poderes nacionais
O ponto fraco desse tipo de alegação é não apenas factual como conceitual, já que países e empresas são radicalmente diferentes. Um país tem controle coercivo sobre sua população e território. Até mesmo o mais fraco dos Estados pode forçar milhares de pessoas a fazerem coisas que prefeririam não fazer: pagar impostos, por exemplo. As empresas funcionam de maneira muito diferente: dependem de competitividade e não de coerção.
Será que alguém duvida que o sistema judiciário dos EUA teria conseguido dividir a Microsoft se realmente o desejasse? Ou que a Microsoft mesma desapareceria se deixasse de produzir o software que seus clientes desejam? Até os direitos de propriedade das empresas estão sujeitos ao poder coercivo do Estado. Nos anos 70, por exemplo, as mais fortes das empresas petroleiras se provaram incapazes de resistir à nacionalização de ativos que lhes pertenciam por países bastante fracos.
Alguns dos pontos podem ser ilustrados empiricamente. Já que as empresas precisam competir, é possível que fracassem. E o fazem. Alguns países têm desempenho superior ao de outros. Mas os altos e baixos na vida das grandes empresas são muito mais dramáticos. Entre 1980 e 2000, 20 empresas saíram do ranking das 50 maiores compilado pela revista "Fortune", e cinco das 10 maiores em 1980 já não lideravam o ranking em 2000. O poder econômico das grandes empresas -seu domínio dos mercados em que operam- é limitado. Também há indícios de declínio no poder econômico das grandes empresas. Um dos indicadores desse poder é a concentração de mercado, sob a suposição -seguramente questionável- de que isso indique o potencial de lucros monopolistas. No entanto, não há indicação de um aumento generalizado na concentração. Em alguns setores importantes -telecomunicações, por exemplo-, a concentração certamente declinou.
O mais importante é que as suposições dos críticos da globalização são deformadas. A globalização significa aumento na competição e redução no poder monopolista. Pergunte à GM ou à Ford o que a Toyota quer dizer a elas.
Números errôneos, compreensão incorreta das tendências e, acima de tudo, uma estrutura de análise enganosa -os críticos são culpados de todos esses equívocos. Mas o pior deles é o último. Ao comparar a capacidade de crescimento das empresas com a capacidade dos governos para exercer poder coercivo, eles são culpados de, no mínimo, confusão, e talvez até de uma deliberada distorção da verdade.
As empresas não podem ser comparadas a Estados. Mesmo que fossem muito maiores do que são, a comparação não seria pertinente. Será que isso significa que não há nada a criticar no poderio das grandes empresas? Longe disso. Dois pontos são corretos. Primeiro, a abertura das fronteiras amplia o número de opções para os cidadãos, particularmente para os proprietários de fatores móveis de produção. Isso limita o poder coercivo dos Estados. Para os críticos, isso é uma erosão da democracia. Para os defensores das empresas, representa um ganho de liberdade individual. Ambas as posições estão corretas, ainda que o impacto se deva não às empresas mas aos mercados.
O segundo ponto, mais diretamente relevante, é que as grandes empresas influenciam as decisões políticas por meio de lobbies e de contribuições para campanhas eleitorais, como demonstra o caso Enron. Por motivos explicados por Mancur Olsen, famoso por sua influente análise sobre a lógica da ação coletiva, os interesses concentrados geram desfechos políticos desequilibrados. No entanto, as grandes empresas não são donas incontestes do universo. O que mudou nos anos 80 e 90 não foi o poder das grandes empresas em si, mas aquilo que os governos acreditavam funcionaria em termos econômicos.
A mudança que vimos nos últimos 20 anos é uma globalização conduzida pelo mercado e deflagrada, consciente e voluntariamente, pelos governos. Grandes empresas não são tão grandes ou poderosas quanto dizem os críticos. A crença na posição oposta é só mais uma lenda urbana.


Tradução de Paulo Migliacci

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