São Paulo, quarta-feira, 03 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Na rota do tinhoso


Economistas "progressistas" em breve dirão que inflação maior é motivo para baixar juros, pois reduz o consumo

NADA HOJE preocupa mais um (autodenominado) "desenvolvimentista" do que a possibilidade de o Banco Central interromper o ciclo de queda de juros. Assim, não chega a ser surpreendente que a cada sinal de elevação da inflação chovam declarações do tipo "é só o preço dos alimentos", "os investimentos vão subir e reduzir a inflação" e outras do gênero fantasia. Mais recentemente, um argumento que tem aparecido -a ponto de merecer a duvidosa honra de ser negado em plena ata do Copom- refere-se ao aumento do preço dos alimentos e seus efeitos sobre a renda real.
Segundo esse raciocínio, preços mais elevados de comida reduziriam a renda real e, portanto, o consumo, de modo que o BC não precisaria se preocupar com o ritmo de expansão da demanda e poderia seguir baixando a taxa básica de juros. Obviamente, ninguém associa nenhum número ao argumento (quanto cairia o consumo, por exemplo), mantendo a tradição de fugir da quantificação como o canhoto foge da cruz, mas hoje nem precisarei entrar nesse aspecto para mostrar que essa lógica não se sustenta.
Noto, de início, que preços de alimentos mais altos resultam de um choque de demanda, não da contração da oferta ("Bebida é água; comida é pasto", 5/9/2007), o que é visível pela expansão simultânea de preços e quantidades. Obviamente, isso não é consolo nenhum para o consumidor, dado que sua renda real -ou seja, a quantidade de coisas que sua renda permite comprar- certamente se contrai à medida que preços de alimentos se tornam mais altos, independentemente da razão última do aumento dos preços.
No entanto, a origem da elevação dos preços faz toda a diferença para o produtor de alimentos. Em particular, se a alta de preços resulta da elevação da demanda, a renda real dos produtores de alimentos crescerá. Resta saber qual desses efeitos prevalecerá: a queda da renda real dos consumidores ou a maior renda dos produtores.
Deixando de lado efeitos de segunda ordem, esses impactos se compensariam: o ganho de renda dos produtores de alimentos corresponderia à perda dos consumidores de alimentos e alguém teria que fazer cálculos bastante complicados para saber qual o efeito final sobre a demanda, que, em qualquer caso, seria pequeno.
O Brasil, porém, é um exportador líquido de alimentos. Isso significa que, quando sobem os preços de alimentos, consumidores estrangeiros transferem liquidamente uma fração da sua renda para os produtores brasileiros, ou seja, há uma elevação da renda nacional, resultado precisamente oposto ao advogado pelos "desenvolvimentistas".
Em outras palavras, não há por que imaginar que preços de comida mais altos impliquem uma redução do consumo em geral (ainda que o consumo doméstico de alimentos possa cair). Pelo contrário, a elevação da renda nacional deverá induzir a um crescimento maior do consumo, ainda que esse efeito deva ser ponderado, obviamente, pelo saldo na balança comercial de alimentos proporcionalmente ao PIB (Produto Interno Bruto).
De qualquer forma, é curioso como visões preconcebidas acerca da política monetária levam a proposições cuja coerência interna não se sustenta. Economistas ditos progressistas comemoraram a queda do salário real e em breve afirmarão que a inflação mais alta é mais um motivo para baixar a taxa de juros, pois reduz a renda real e o consumo. Fogem da lógica como correm dos números, nos calcanhares do tinhoso.

ALEXANDRE SCHWARTSMAN , 44, economista-chefe para América Latina do Banco Real, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil.
http://maovisivel.blogspot.com/

alexandre.schwartsman@hotmail.com


Texto Anterior: Bancos oficiais não diminuem o "spread"
Próximo Texto: Bradesco quer disputar bancos estaduais
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.