São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A dívida que o transporte quer pagar

KEIJI KANASHIRO

Um dia, ao falar com um jornalista da área econômica, fui enumerando os diferenciais do governo Lula para o setor de transportes sem mencionar números. Contei as principais ações que estão contribuindo para o pagamento da dívida social do país.
Um setor antes preocupado com grandes projetos e com recursos para custeio de concreto, de asfalto e de engenhocas da tecnologia passou a perseguir a meta da geração de empregos. Ocorreu uma ruptura histórica com um passado de obras, determinadas pela geopolítica, e o início da construção do verdadeiro Ministério dos Transportes, a serviço da integração, do desenvolvimento, da agricultura, do turismo e do comércio exterior.
Foi preciso retomar o planejamento de longo prazo, esquecido desde os planos decenais dos governos militares, elaborar uma matriz nacional de origem e destino de cargas que mapeasse a produção, o consumo e o seu destino, dar novo foco aos projetos de integração, apostando na união física para o desenvolvimento e o fortalecimento da América do Sul.
A maior mudança foi romper com a cultura de trabalhar apenas para pagar as contas das obras. O ministério passou a resgatar uma pesada dívida com a sociedade, pensando o transporte como instrumento de inclusão social e de preservação do ambiente.
A criatividade preponderou sobre o orçamento limitado e permitiu encontrar alternativas para problemas sociais derivados do transporte. A retomada do transporte ferroviário de passageiros foi um grande passo e 2003 terminou com quase cem pedidos de trens para fins turísticos, de desenvolvimento regional ou social. Pelo menos dez trechos estarão operando neste ano.
A Transnordestina vem saldar parte da dívida, com a tarefa de levar e trazer gente e riquezas para a região. Se o olhar fosse só econômico, a obra seria a última a ser realizada entre as ferrovias em construção no Brasil, rol que inclui a Ferronorte e a Norte-Sul. Mas é preciso transporte para desenvolver o Nordeste e atacar a miséria social. A ferrovia será vital para o sistema logístico do Nordeste, complementado por projetos como a BR-101, a revitalização da malha ferroviária nordestina, os portos de Itaqui, Aratu, Pecém e Suape.
A produção agrícola recorde do Centro-Oeste requer transporte de qualidade e barato. A ferrovia é o modo indicado, mas, no corredor ferroviário de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul até o porto de Santos, o maior gargalo é a habitação. No trecho entre Campinas (SP) e o porto, a faixa de domínio foi ocupada e há 6.000 residências em áreas de risco. A favelização obriga à redução drástica da velocidade dos trens e não afasta os riscos à segurança, gerando mortes, mutilações e depredação de patrimônio.
Entra em cena a engenharia social para resolver um problema de habitação e garantir benefícios econômicos que extrapolam o transporte. O Ministério dos Transportes deve fechar um diagnóstico no primeiro semestre deste ano e articular a solução com outros ministérios, Estado e municípios. Irá promover a revitalização da faixa de domínio e a transferência negociada dos moradores em situação de risco.
A conservação de rodovias vai gerar mais empregos. Com o Ministério da Assistência Social será lançado um programa para garantir 200 empregos de mão-de-obra local por trecho rodoviário. A fórmula, aplicada com sucesso no continente africano, é simples: bastará incluir novos critérios nos contratos com empreiteiras.
A pavimentação da BR-163, que liga Mato Grosso ao Pará, paga uma dívida com o desenvolvimento do Norte do país. Lá a falta de transporte limita o acesso a bens e serviços comuns. Porém não basta concluir uma ligação rodoviária, é preciso garantir um projeto de desenvolvimento regional sustentável, que considere o transporte, a produção e, prioritariamente, o ambiente.
A mudança da matriz de transportes brasileira, que transporta mais por rodovia do que pelos dois modos mais econômicos (hidrovia e ferrovia) e que esqueceu a cabotagem, é outra forma de saldar a dívida-país. O transporte competitivo gerará um efeito em cadeia: mais grãos no campo, mais tecnologia na indústria e aumento da lista de supermercado.
A ênfase no social, em vez de assustar, instiga. Instituições financeiras de peso estão de olho nos projetos citados e há, para espanto, um clima de disputa. A iniciativa privada vem percebendo a importância de ser parceira e se mostra aberta a firmar um modelo misto de investimentos.
A missão está no começo, mas vale dar um toque para a sociedade: é preciso enxergar a ação pública além dos números e perceber que o espetáculo do crescimento depende muito mais do "por que fazer", do "como fazer" e do "onde fazer" do que das especulações sobre "quando" e "quanto", sempre repisadas pela mídia.
Costumo dizer que ainda hoje o problema do Ministério dos Transportes não é de orçamento, mas de gestão. Mais do que ter dinheiro, é preciso saber gastá-lo adequadamente e em projetos que tragam soluções para transformar o Brasil.


Keiji Kanashiro é secretário-executivo do Ministério dos Transportes.

Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Maria da Conceição Tavares.


Texto Anterior: Opinião Econômica - Rubens Ricupero: Felicidades
Próximo Texto: Luís Nassif: Os incríveis Índios Tabajaras
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.