São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2001

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LUÍS NASSIF

O grito da terra

O largo de São Benedito de Poços de Caldas não era uma praça, era uma personalidade de terra e cascalho. No meio, a igreja do São Benedito, que ainda não havia sido coberta de pedras. A gente pensava no largo como um amigão maior que abrigava nossas peladas e nos fazia reis quando tínhamos de enfrentar os adversários. Como na grande guerra de pedras contra o time do Palmeirinhas, comandada heroicamente pelo Euclides, irmão da dona Neusa, minha professora do quarto ano primário, que em tudo lembrava de "Os Meninos da Rua Paulo".
Foi no morro do São Benedito que, nas festas do mês de maio, ouvi pela primeira vez a dupla Tonico e Tinoco cantando seu grande sucesso, "Cana Verde" ("abra a porta e a janela / venha ver quem é que eu sou").
Nas festas ouvíamos Tonico e Tinoco pelo serviço de música Cacique no Ar. Fora das festas, ao vivo, em temporadas do Circo Garcia, do Circo Teatro Bibi, estreladas pelo palhaço Bibi e por sua irmã, a Mulata, e do Circo Savalla, dos pais da atriz Elizabeth Savalla.
Com o tempo, gradativamente, ano após ano, a dupla tornou-se uma instituição. Suas canções entraram definitivamente no repertório de toda roda de música em Minas e São Paulo, acho que também Paraná.
Ambos eram irmãos, Tinoco nascido em 1920, Tonico quatro anos antes. Começaram a cantar quando aprenderam a falar. Até os 20 anos ficaram na roça, em Pratânica, região de São Manuel, puxando o terço nas novenas. No interiorzão da época não havia nem rádio nem jornal. Como conta Tinoco, "aprendemos a compor, cantar, tocar. Deus é quem deu a mão".
A primeira mão veio quando gravaram "Tristeza do Jeca", de Angelino de Oliveira. Era um poema de 40 versos. "Nós cantava, tinha até que tomar café no meio para descansar", recorda Tinoco. Na gravação, decidiram reduzi-lo para três estrofes.
A segunda mão foi um concurso da rádio Difusora no qual quem definia o vitorioso era um "palmômetro" -um cronômetro enorme que media o tempo de palmas que cada música recebia. Cantaram "Em Vez de me Agradecer", do Capitão Furtado. Até então, o máximo que o "palmômetro" caminhara eram 20, 30 segundos em uma música do Cafezal, grande violeiro da rádio Cultura de Poços. Quando Tonico e Tinoco se apresentaram, o ponteiro disparou e deu uma volta e meia.
Aí não pararam mais. Gravaram mais de 1.400 modas. Consagraram clássicos da música caipira, como "Chico Mineiro", de ambos, mas só registrada em nome de Tonico. Gravaram Nhô Pai, grande compositor de Assis, artista e dono de circo, que formava a dupla Nhô Pai e Tonico (irmão dele) e compôs "Beijinho Doce".
Em 50 anos chegaram a fazer uma média de dois a três shows por dia. Chegavam às cidades do interior, alugavam cinemas, faziam a propaganda, e as casas enchiam no mesmo dia.
Por Tonico e Tinoco passaram os maiores, como Teddy Vieira, compositor seresteiro que cantava na Mooca e compôs alguns dos maiores clássicos da música caipira, como "Menino da Porteira". A dupla abriu caminho para uma profusão de violeiros, hoje meio desaparecidos, como Lio e Léu, Zico e Zeca, meus conterrâneos Moreno e Moreninho, que cantavam os pontos da congada de São Benedito, João Mineiro e Marciano, Milionário e Zé Rico, Mato Grosso e Mathias e Pardinho e Tião Carreiro, este o maior violeiro que o país já conheceu, com sua viola e sua voz de um Orlando Silva caboclo.
Tonico morreu há alguns anos. Em novembro do ano passado Tinoco completou 80 anos, sendo saudado em um show por todas as duplas sertanejas atuais. Da longa carreira de shows, não acumularam muita coisa. Até hoje Tinoco canta com Toniquinho (filho de Tonico) para sobreviver. A razão é simples: "Sempre entendemos que a música nos foi dada como uma graça de Deus, para que a gente pudesse distribuir o que recebemos".

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