São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2001

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Alternativa a Davos

LUCIANO COUTINHO

No fórum Social Mundial em Porto Alegre, semana passada, buscou-se construir uma alternativa à "desordem global". No que toca a finanças internacionais, partiu-se do reconhecimento de que a globalização desregulada é um processo muito perigoso para a economia (e sociedade) mundial -incluindo países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Como é conhecido, os mercados financeiros se agigantaram e os preços inflaram extraordinariamente nas duas últimas décadas. Liberalizados, os fluxos de capitais entre economias e mercados também foram magnificados. Esse processo foi, em larga medida, alavancado em dívidas, sendo que em vários mercados de risco (derivativos de juros e de câmbio, Bolsa de Valores) as posições dos agentes são como pirâmides invertidas: sobre uma pequena base própria de capital empilha-se uma montanha de papéis lastreados em dívidas. Nos momentos de alta incerteza se retraem os bancos e investidores que normalmente asseguram liquidez aos papéis: todos querem fugir do risco, os mercados ficam estreitos, os preços despencam, muitos agentes ficam em estado virtual de insolvência. Nessas horas apenas uma intervenção de última instância por parte do Estado (Banco Central, Tesouro ou outro agente financeiro público) pode evitar a "débâcle". O problema atual é grave porque os mercados de capitais são gigantescos e estão mundialmente integrados, enquanto as instituições reguladoras são nacionais (com exceção do FMI) e, além disso, seu porte e capacidade de intervenção são limitados. Por exemplo: os mercados de câmbio transacionam mais de US$ 1,5 trilhão/dia, diante de reservas de divisas dos países desenvolvidos de aproximadamente US$ 700 bilhões.
Nos últimos anos sempre que se partiu um elo frágil houve alguma intervenção "ad hoc". Funcionou em 1995 na crise do México (Tesouro dos EUA); falharam em 1997 e em 1998 (crises da Ásia e da Rússia); salvou-se, por um triz, da falência o grande fundo especulativo LTCM em outubro de 1998 (Fed de Nova York); evitou-se uma "débâcle" desorganizada do Brasil em 1998-1999 (FMI). Recentemente salvaram-se a Argentina e a Turquia. Não há mais garantia de estabilidade, e os riscos pendentes são graves: a economia dos EUA inicia um processo de recessão que pode ter sequelas dramáticas sobre a posição do dólar, sobre as Bolsas e sobre o sistema de crédito. O Fed vem fazendo a sua parte, cortando incisivamente os juros nos EUA, mas na Europa o BCE reluta e posterga uma redução semelhante, indispensável para assegurar um ritmo de crescimento satisfatório à União Européia.
Diante da magnitude dos problemas, é bisonho o remédio proposto pela elite de Davos: recomenda a auto-regulação do risco pelos próprios bancos com melhoria da transparência e da qualidade das estatísticas sobre as posições financeiras dos países e instituições. De outro lado, existem propostas utópicas (em geral de economistas descolados), tais como: a) criação de um BC mundial; b) atribuição de poderes ilimitados de intervenção do FMI; c) adoção de um imposto (do tipo CPMF) sobre todas as transações cambiais -a taxa Tobin; d) organização de cartéis de devedores.
Uma agenda ousada, porém mais realista -tal como propus em Porto Alegre- incluiria: 1) institucionalização da cooperação entre os principais bancos centrais, começando com um acordo para permitir uma aterrissagem suave ao dólar; 2) criação de uma banda cambial global para suavizar as flutuações excessivas entre dólar-euro-iene; 3) imposição de limites severos às práticas de alavancagem em dívidas especialmente nos mercados de derivativos, câmbio e Bolsas; 4) reforço à capacidade de intervenção do FMI com mudança de sua orientação contraproducente e excessivamente conservadora em matéria fiscal; 5) reforma do Banco Mundial e dos grandes bancos regionais; 6) apoio à integração regional entre países em desenvolvimento (Mercosul, Asean e outros blocos), inclusive quanto à criação de moedas regionais; 7) admissão de controles sobre fluxos de capitais, assim como o reconhecimento de uma "cláusula de concordata" para dívidas soberanas, tal como a existente nos EUA para empresas privadas, conforme proposta da Unctad; 8) criação/reforço aos mecanismos de proteção dos preços das commodities exportadas pelos países em desenvolvimento.
A viabilidade dessas reformas exigiria uma mudança de postura por parte dos grandes poderes. A ascensão de Bush parece excluir essa possibilidade. Lamentavelmente, a ocorrência de um grave desastre financeiro parece ser necessária para que a lição venha a ser aprendida. Enquanto isso aos países em desenvolvimento não resta alternativa senão minimizar a vulnerabilidade de suas contas externas, como fazem os asiáticos para poder crescer sustentadamente. Exatamente o contrário da política brasileira -de estulta indulgência ante déficits externos elevados que nos subordinam às marés malignas dos mercados desregulados.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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