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São Paulo, terça-feira, 04 de março de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Plantar a paz e colher amor

BENJAMIN STEINBRUCH

Victoria Alessandra é vidrada em Carnaval, sempre quis desfilar na Marquês de Sapucaí. Nunca teve coragem, porque as escolas de samba ficam nas periferias do Rio, nos (perigosos!) morros.
Mas desta vez Victoria Alessandra perdeu o medo. Convenceu o namorado a acompanhá-la e, em dezembro, ligou para a Mangueira. Quem atendeu o telefone foi Márcia, responsável pelas fantasias da escola. De cara, disse que teria dificuldade para conseguir duas vagas para pessoas sem experiência de desfile. Afinal, já havia muitos trajes reservados para convidados que sempre saem na "verde-e-rosa".
Com um jeito despachado e tipicamente carioca, Márcia esticou a conversa e falou muito sobre a comunidade mangueirense. Contou que os grupos de fora que desfilam uma vez passam a pertencer à família da Mangueira e têm lugar garantido nos anos seguintes. Depois, discorreu sobre o samba-enredo deste ano, "Os Dez Mandamentos - O Samba da Paz Canta a Saga da Liberdade". Por fim, conversa vai, conversa vem, surpresa: arranjou as duas vagas.
As fantasias, da ala dos Anjos Guerreiros da Paz, logo atrás das Baianas, custariam R$ 450 cada uma, em três pagamentos depositados na conta bancária da escola. Turistas estrangeiros poderiam pagar até US$ 450 (o dólar do samba ainda vale um real). Mas isso nada teria a ver com a Mangueira, e sim com as agências de turismo, que intermedeiam a operação.
Victoria Alessandra deveria retirar as fantasias no morro da Mangueira. "No morro?", perguntou, assustada. "Mas não tem perigo?" Márcia riu. Ela poderia enviar as fantasias para qualquer lugar no Rio, por mais R$ 10, mas, francamente, achava que desfilar sem conhecer o morro não tinha a menor graça. O ideal seria chegar ao Rio com o samba decorado, na ponta da língua, participar do ensaio na quadra, na sexta-feira, e conviver um pouco com a grande família da Mangueira.
Chegar na sexta-feira era problema para uma trabalhadora paulista. Além disso, Victoria Alessandra não tinha onde dormir no Rio e pensava em chegar na segunda-feira, dia do desfile. "Nada disso, se não têm onde ficar, você e seu namorado podem dormir com a gente, aqui no morro. Quero que conheçam a minha casa. É pequena, mas tem lugar para todos."
Assim é que as coisas funcionam no Carnaval carioca. As escolas precisam de convidados, porque isso ajuda a financiar o desfile, a mais espetacular manifestação da cultura popular brasileira, para 2 milhões de turistas locais e estrangeiros. Mas nenhum convidado pode pisar nas alas técnicas, reservadas ao pessoal da comunidade.
Victoria Alessandra e o namorado devem ter atravessado a Sapucaí ontem à noite, entre dezenas de outros soldadinhos da paz, vestidos de branco da cabeça aos pés. Os dois pagaram R$ 900 por uma hora e meia de euforia, longe de Saddams, Bushs, Chiracs, Blairs, armas químicas, biológicas ou nucleares.
Devem ter repetido por mais de 50 vezes os versos do contagiante samba-enredo da verde-e-rosa: "A vontade de Deus é a lei da verdade/Foi revelada pra humanidade/Mostra pro mundo Brasil, meu Brasil/O caminho da felicidade/Quem plantar a paz vai colher amor".


Benjamin Steinbruch, 49, empresário,é presidente do conselho de administração da Companhia Siderúrgica Nacional.

E-mail - bvictoria@psi.com.br

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