São Paulo, sábado, 04 de abril de 2009

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CESAR BENJAMIN

Nada será como antes


Os EUA, ao se endividarem sem crescer, desperdiçam recursos do mundo sem oferecer uma contrapartida

HÁ POUCOS dias, troquei ideias com dois amigos sobre o plano apresentado pelo presidente Obama, que prevê o uso de recursos públicos para comprar US$ 1 trilhão em títulos podres, com farta emissão de moeda. Três pessoas conversando, três opiniões diferentes. Um dizia que o plano é ruim: o esforço para provocar inflação e desvalorizar o dólar é uma tentativa de repassar ao mundo -credor do dólar- o preço da crise. Outro dizia que o plano é bom: cria um mecanismo de enxugamento de ativos tóxicos, condição para restabelecer o crédito; a recuperação americana, que depende disso, seria a melhor contribuição para a economia mundial. Ambas as posições têm sentido.
Mas eu creio que o plano, simplesmente, não vai funcionar. Denominei "O tamanho da crise" um recente artigo neste espaço. Mas é preciso prestar atenção também à qualidade dela. O modelo econômico americano, predominantemente financeiro e rentista, não poderá se reconstituir nas mesmas bases anteriores.
As sofisticadas formas de gestão da pirâmide financeira e dos endividamentos superpostos deterioraram-se irremediavelmente. Será preciso renovar instituições, práticas, sistemas de regulação, saberes, formas de relação entre o mundo da finança e a economia real -ou seja, os "softwares" que fazem a economia funcionar. Esse me parece ser o ponto mais importante, pois mostra a complexidade da situação.
Não há exagero em falar em colapso. O Estado americano está funcionando à custa de aumentar déficits internos e externos que já são estratosféricos. Vários entes federativos estão quebrados. O sistema financeiro deixou de funcionar, e sua situação tende a se deteriorar rapidamente. Fundos de pensão e outros importantes investidores institucionais experimentaram perdas trilionárias, com óbvias projeções para o futuro. Várias grandes empresas -outrora chamadas "campeãs nacionais"- podem falir. Com o crescimento do desemprego e a queda na renda, as dívidas das famílias mostram-se cada vez mais impagáveis, ameaçando financeiras e operadoras de cartões de crédito. Basta um mau passo para tudo desandar.
O trilhão de ativos tóxicos, que o presidente Obama pretende enxugar, é uma diminuta parte do problema, para o qual, visto como um todo, não há solução à vista. Produzir déficits não significa, necessariamente, aplicar políticas keynesianas. Keynes propunha que o Estado irrigasse com recursos uma economia que estivesse operando abaixo do seu potencial, tendo em vista estimular o sistema produtivo, conduzindo-o gradativamente à posição de pleno emprego. Ao aumentar a produção, também se aumenta a capacidade de tributar, o que possibilita recuperar o equilíbrio em um nível mais elevado de atividade econômica. O déficit keynesiano não é um gasto qualquer, que sai pelo ralo, mas sim aquele que tem sensível efeito multiplicador sobre a renda. Ao permitir obter um produto maior, ele se compensa dinamicamente, fortalecendo até as receitas do Estado.
O que está em curso, porém, são déficits crescentes que não conseguirão produzir uma retomada minimamente organizada e significativa da atividade, pois as instituições e os modos de regulação da economia não funcionam mais. Os Estados Unidos podem não ter problemas de solvência em curto prazo, pois ainda são os emissores da moeda mundial.
Mas, ao se endividarem sem crescer, desperdiçam recursos do mundo sem oferecer uma contrapartida. Espalham desordem e instabilidade.
Estamos em voo cego. Para além das retóricas e até mesmo das boas intenções, as tensões geopolíticas tendem a crescer.


CESAR BENJAMIN , 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.


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