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LUÍS NASSIF
O 'Caldeirão do Diabo'
No final dos anos 50, Poços
de Caldas perdera o cetro, mas
não a majestade. Não havia
mais o jogo, as estrelas dos cassinos, nem a família Vargas
trazendo o séquito com os
principais políticos, militares,
funcionários públicos e empresários do país -quase todos furiosamente empenhados na
mais heráldica e disputada galinhação da época.
Mas ainda havia vestígios de
história. Nas temporadas, nos
almoços de domingo na casa
da tia Rosita, irmã de meu pai,
compareciam do senador
goiano Domingo Velasco
-um dos ícones da campanha
do "Petróleo é Nosso'- ao marechal Juarez Távora, o mais
ardoroso adversário do monopólio estatal do petróleo, candidato a presidente derrotado
por JK.
Quase senti o bafo da história na minha testa no dia em
que meu avô materno Issa Sarraf, membro da UDN e do Clube da Lanterna (dos udenistas
mais radicais, que seguiam a
orientação de Carlos Lacerda), me apresentou, menino
de 8 anos, ao marechal. Até arrepiei, porque aprendi a ler em
uma cartilha, em forma de
quadrinhos, que contava a vida heróica do marechal, incluindo cenas em que ele e seu
irmão pulavam no mar fugindo de uma fortaleza-prisão,
pouco antes de se tornar o "Vice Rei do Norte" da Revolução
de 30. Era mais emocionante
que o Conde de Monte Cristo.
O marechal botou a mão na
minha cabeça e vaticinou:
"Você será um udenista, como
seu avô". Agradeci, pedi licença e fui até o baleiro do bar do
vô Issa pegar meu bombom Peter Pan.
A solidariedade dos partidos
políticos da época não era
brinquedo. Certa feita vô Issa
contraiu uma doença tropical
qualquer, malária, sei lá. Baixou todo o estado maior da
UDN para visitá-lo, de Juracy
Magalhães (o presidente) ao
seu líder Carlos Lacerda. Beata de primeira linha, minha vó
Martha presenteou Lacerda
com uma cópia do Salmo 90,
para protegê-lo das viagens e
dos inimigos. Outro dia li que
a oração foi presenteada a Lacerda por um bispo. Bispo,
uma pinóia! Era uma vó Marta autêntica, igualzinho à que
ela me presenteou quando entrei para o jornalismo, com
sua letrinha caprichada e com
um agá que nunca consegui
reproduzir, nem em cadernos
de caligrafia.
O bar e restaurante Serigy,
do vô Issa, era o ponto político
da cidade. Nas segundas, havia reunião da UDN, da qual
meu avô foi presidente durante certo período. Às terças, do
PSD. Também havia o PTB.
Quando se reuniam os partidos adversários, vô Issa mantinha a ética dos donos de bar.
Não utilizava nenhuma informação contra os adversários,
servia as empadinhas preparadas pelas minhas oito tias,
mas -creio eu, a julgar por
seu temperamento- não devia resistir a dar alguns palpites na seara alheia.
Em períodos de eleição, o
quadro mudava. Os inimigos
mandavam imprimir panfletos terríveis, chamando o bar
de "Caldeirão do Diabo". Sempre que tinha cacete novo contra ele, o Zé Ayres, do PSD, médico, polemista terrível, passava rapidamente por lá, parava
na porta e avisava: "Amanhã
sai um pau contra você na Folha de Poços". E se mandava
antes de ouvir a resposta. Eu
ficava todo orgulhoso, conferindo o pampeiro que vô Issa
aprontava nas hostes adversárias.
Vô Issa foi vereador durante
duas ou três legislaturas. Seu
principal cabo eleitoral era o
Serginho, um anão que ficava
postado o dia inteiro na porta
do bar, como uma estátua,
com seu boné de motorneiro e
uniforme que parecia do Exército da Salvação, engomadinho de tão ensebado. Só se retirava à noite, para ir dormir
no asilo. Se falasse meia dúzia
de palavras por dia, era muito.
Eu achava que era por aí que
se entendia a votação do vô,
sempre menor do que a gente
gostaria que fosse.
Confusão, confusão mesmo,
foi na eleição para prefeito, em
1958 ou 59, entre o dr. Martinho Mourão, pelo PSD, contra
o dr. David Ottoni, pela UDN.
Pode parecer certo ufanismo
da minha parte, mas era difícil
saber quem era melhor.
Dr. David era engenheiro,
descendente de Teófilo Ottoni,
seríssimo, organizado e conservador. Mas o dr. Martinho
era santo. Médico pediatra,
cuidava de tarde de quem podia pagar, mas só depois de
cuidar de manhã de quem não
podia. Recebia frangos, leitoas
e cachaças em pagamento.
Além de santo, era médico de
todas as crianças da família,
compadre e um dos melhores
amigos do meu pai - que nunca foi de se meter em política.
Nas eleições anteriores, vô
Issa rompera com a UDN para
apoiar o dr. Martinho. Depois,
tiveram uma pinimba qualquer e, nas eleições seguintes,
vô Issa não se limitou a fazer a
campanha do dr. David: ele
queria destruir o dr. Martinho. Bateu mais no dr. Martinho do que o Carlos Lacerda
no Getúlio. E o dr. Martinho
era muito mais santo que o
Getúlio.
Não sei o que ele falou na
época, e nem me interessa saber. Só sei que meu pai passava o dia na maior fossa e minha mãe mais ainda. Só outro
dia, minha vó Martha contou
sua participação no episódio.
Ela está com mais de 90 anos e
há mais ou menos 55 anos a família acompanha com muita
apreensão seus problemas de
saúde.
Pois a vó me contou que, como reação às catilinárias do
vô Issa, as senhoras da cidade
decidiram fazer uma vaquinha e mandar publicar uma
carta de desagravo ao dr. Martinho nos jornais da cidade. E
ela, com aquele ar de falsa
submissa, fuçou nos seus guardados, mandou o dinheirinho
para o povo, assinou seu nome
na lista, com aquele agá de
Martha, que eu não conseguia
copiar, e ligou para o dr. Martinho, manifestando sua solidariedade. Só então o vô Issa
se mancou que estava exagerando.
Aí eu me lembrei de um quadrinho que tinha na parede da
casa deles quando eu era
criança -"Quem manda na
casa é ela, quem manda nela
sou eu'- e morri de rir.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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