São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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LUÍS NASSIF

O 'Caldeirão do Diabo'

No final dos anos 50, Poços de Caldas perdera o cetro, mas não a majestade. Não havia mais o jogo, as estrelas dos cassinos, nem a família Vargas trazendo o séquito com os principais políticos, militares, funcionários públicos e empresários do país -quase todos furiosamente empenhados na mais heráldica e disputada galinhação da época.
Mas ainda havia vestígios de história. Nas temporadas, nos almoços de domingo na casa da tia Rosita, irmã de meu pai, compareciam do senador goiano Domingo Velasco -um dos ícones da campanha do "Petróleo é Nosso'- ao marechal Juarez Távora, o mais ardoroso adversário do monopólio estatal do petróleo, candidato a presidente derrotado por JK.
Quase senti o bafo da história na minha testa no dia em que meu avô materno Issa Sarraf, membro da UDN e do Clube da Lanterna (dos udenistas mais radicais, que seguiam a orientação de Carlos Lacerda), me apresentou, menino de 8 anos, ao marechal. Até arrepiei, porque aprendi a ler em uma cartilha, em forma de quadrinhos, que contava a vida heróica do marechal, incluindo cenas em que ele e seu irmão pulavam no mar fugindo de uma fortaleza-prisão, pouco antes de se tornar o "Vice Rei do Norte" da Revolução de 30. Era mais emocionante que o Conde de Monte Cristo.
O marechal botou a mão na minha cabeça e vaticinou: "Você será um udenista, como seu avô". Agradeci, pedi licença e fui até o baleiro do bar do vô Issa pegar meu bombom Peter Pan.
A solidariedade dos partidos políticos da época não era brinquedo. Certa feita vô Issa contraiu uma doença tropical qualquer, malária, sei lá. Baixou todo o estado maior da UDN para visitá-lo, de Juracy Magalhães (o presidente) ao seu líder Carlos Lacerda. Beata de primeira linha, minha vó Martha presenteou Lacerda com uma cópia do Salmo 90, para protegê-lo das viagens e dos inimigos. Outro dia li que a oração foi presenteada a Lacerda por um bispo. Bispo, uma pinóia! Era uma vó Marta autêntica, igualzinho à que ela me presenteou quando entrei para o jornalismo, com sua letrinha caprichada e com um agá que nunca consegui reproduzir, nem em cadernos de caligrafia.
O bar e restaurante Serigy, do vô Issa, era o ponto político da cidade. Nas segundas, havia reunião da UDN, da qual meu avô foi presidente durante certo período. Às terças, do PSD. Também havia o PTB. Quando se reuniam os partidos adversários, vô Issa mantinha a ética dos donos de bar. Não utilizava nenhuma informação contra os adversários, servia as empadinhas preparadas pelas minhas oito tias, mas -creio eu, a julgar por seu temperamento- não devia resistir a dar alguns palpites na seara alheia.
Em períodos de eleição, o quadro mudava. Os inimigos mandavam imprimir panfletos terríveis, chamando o bar de "Caldeirão do Diabo". Sempre que tinha cacete novo contra ele, o Zé Ayres, do PSD, médico, polemista terrível, passava rapidamente por lá, parava na porta e avisava: "Amanhã sai um pau contra você na Folha de Poços". E se mandava antes de ouvir a resposta. Eu ficava todo orgulhoso, conferindo o pampeiro que vô Issa aprontava nas hostes adversárias.
Vô Issa foi vereador durante duas ou três legislaturas. Seu principal cabo eleitoral era o Serginho, um anão que ficava postado o dia inteiro na porta do bar, como uma estátua, com seu boné de motorneiro e uniforme que parecia do Exército da Salvação, engomadinho de tão ensebado. Só se retirava à noite, para ir dormir no asilo. Se falasse meia dúzia de palavras por dia, era muito. Eu achava que era por aí que se entendia a votação do vô, sempre menor do que a gente gostaria que fosse.
Confusão, confusão mesmo, foi na eleição para prefeito, em 1958 ou 59, entre o dr. Martinho Mourão, pelo PSD, contra o dr. David Ottoni, pela UDN. Pode parecer certo ufanismo da minha parte, mas era difícil saber quem era melhor.
Dr. David era engenheiro, descendente de Teófilo Ottoni, seríssimo, organizado e conservador. Mas o dr. Martinho era santo. Médico pediatra, cuidava de tarde de quem podia pagar, mas só depois de cuidar de manhã de quem não podia. Recebia frangos, leitoas e cachaças em pagamento. Além de santo, era médico de todas as crianças da família, compadre e um dos melhores amigos do meu pai - que nunca foi de se meter em política.
Nas eleições anteriores, vô Issa rompera com a UDN para apoiar o dr. Martinho. Depois, tiveram uma pinimba qualquer e, nas eleições seguintes, vô Issa não se limitou a fazer a campanha do dr. David: ele queria destruir o dr. Martinho. Bateu mais no dr. Martinho do que o Carlos Lacerda no Getúlio. E o dr. Martinho era muito mais santo que o Getúlio.
Não sei o que ele falou na época, e nem me interessa saber. Só sei que meu pai passava o dia na maior fossa e minha mãe mais ainda. Só outro dia, minha vó Martha contou sua participação no episódio. Ela está com mais de 90 anos e há mais ou menos 55 anos a família acompanha com muita apreensão seus problemas de saúde.
Pois a vó me contou que, como reação às catilinárias do vô Issa, as senhoras da cidade decidiram fazer uma vaquinha e mandar publicar uma carta de desagravo ao dr. Martinho nos jornais da cidade. E ela, com aquele ar de falsa submissa, fuçou nos seus guardados, mandou o dinheirinho para o povo, assinou seu nome na lista, com aquele agá de Martha, que eu não conseguia copiar, e ligou para o dr. Martinho, manifestando sua solidariedade. Só então o vô Issa se mancou que estava exagerando.
Aí eu me lembrei de um quadrinho que tinha na parede da casa deles quando eu era criança -"Quem manda na casa é ela, quem manda nela sou eu'- e morri de rir.

E-mail: lnassif@uol.com.br


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