São Paulo, segunda, 4 de maio de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Primeiro de Maio

JOÃO SAYAD


Antigamente, todas as famílias tinham assuntos tabus, coisas que não podiam ser ditas na frente das crianças. O tio mais moço que fugiu com a mulher do amigo, o primo com escolha sexual heterodoxa, a origem do patrimônio do bisavô. Em casa de enforcado não se fala de corda.
Assuntos interditados são eleitos como os mais importantes, porque não podem ser ditos. São metafísicos, não-científicos, mas os únicos que interessam.
Foi o que aconteceu com o desemprego. O governo passou a afirmar que não existe, se existe, não é grave, se é grave, é igual ao do mundo inteiro, se é igual ao do mundo inteiro, quem somos nós para resolver?
O governo tem razão.
Logicamente, o desemprego não existe.
Se existissem pessoas que podem trabalhar e que não trabalham, tudo perderia sentido: por que "economizar" se sobra mão-de-obra?
Por que fazer a reforma administrativa para liberar mão-de-obra? Por que "poupar", isto é, economizar alguma coisa se ela pode ser produzida pelo desempregado? Por que aumentar a produtividade de qualquer coisa, se o aumento de produtividade vaza e se desperdiça em desemprego? Por que reformar a Previdência, para que as pessoas se aposentem mais tarde se já existem pessoas sem o que fazer? Nada disso faria sentido, se existisse desemprego.
E essas pessoas que conhecemos, os moços que vemos nas ruas vendendo Mentex nos sinais de trânsito, os brasileiros que vão para o Sul, voltam para o Nordeste, os que fazem fila nos gabinetes dos políticos para pedir emprego, os "curriculum vitae" que os Correios despejam aos montes nas mesas dos diretores das empresas, quem são essas pessoas?
No início do século, eram chamados de vagabundos. Depois foram promovidos e, até o final dos anos 70, foram chamados de desempregados.
Eram desempregados porque respondiam as pesquisas sobre emprego dizendo que já tiveram emprego formal, que procuraram emprego na semana passada.
Naquela época, se fossem muitos, o governo ficava preocupado, abaixaria as taxas de juros, ou definiria um programa de gastos públicos ou redução de impostos até que fossem contratados. Poderiam até ser contratados para abrir buracos enquanto outros tapassem buracos como sugeriu Keynes.
Hoje em dia, não é mais assim. Somam-se todos os que respondem sim às perguntas do questionário. Se forem muito poucos, o Banco Central americano fica preocupado com a inflação, aumenta a taxa de juros e derruba a Bolsa de Valores de Nova York.
Entram menos dólares no Brasil, que também aumenta a taxa de juros até que exista um bom número deles de novo.
Portanto, estes tipos que procuram emprego e não acham são uma espécie de âncora antiinflacionária e não podem ser considerados um problema.
Quanto mais deles houver, menos inflação.
Além disso, o pessoal que não trabalha forma um conjunto heterogêneo. Não podemos somá-los. Não se somam variáveis de grandeza diferentes, maçãs com bananas e litros de água.
Entre os que não trabalham, existem pessoas que já não servem para mais nada. São da classe média, boa formação educacional, mais de 40 anos, casados, com filhos.
Se fossem contratados, custariam muito caro e não fariam nada melhor ou mais rápido do que um rapazinho ambicioso que acaba de sair da faculdade. Precisa se converter em empresário -não sei quem vai comprar o que ele produzir, mas este já é outro problema. Desempregado não é.
Existe outro tipo de desocupado. São homens e mulheres de todas as idades que pertencem à classe de renda mais baixa. Têm nível educacional baixo e realizavam tarefas que iam desde o trabalho braçal até o controle e operação de máquinas como tornos, fresadeiras, escavadeiras etc.
Hoje em dia, essas máquinas requerem menos operadores, porque são controladas e até operadas por computador. Os que realizavam trabalhos braçais podem achar emprego, mas como existem tantos deste tipo, só vale a pena contratá-los informalmente, sem carteira e sem muito custo social extra.
São desempregados apenas no sentido antigo de que se o produto crescer, o câmbio se desvalorizar ou os gastos públicos crescerem, serão contratados.
Mas por que o produto deveria crescer mais rápido aqui ou no mundo se sobra comida, sobra automóvel, sobra televisão, sobra quase tudo para os que continuam empregados? Portanto, poucos serão contratados. Outros, nunca mais, pois são velhos, ou porque têm educação demais ou porque têm educação de menos.
Portanto, as autoridades do governo, ao afirmarem que não existe desemprego, estão respeitando a lógica. Não pode existir mesmo porque não temos solução para o problema deles. Não é um problema brasileiro. Se não existe solução nem no exterior, não existe problema.
Somando todos, formam um conjunto heterogêneo que não merece um nome comum. A única coisa que podemos dizer é que são gente.
Não há o que comemorar no Dia do Trabalho. Vamos esperar o Dia das Mães.


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.



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