São Paulo, segunda, 4 de maio de 1998

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LUÍS NASSIF
A seca e o exercício da indignação

O episódio da seca do Nordeste é a prova viva e acabada de como somos um povo indignado. Se indignação fosse medida de solidariedade, não haveria mais problema social no país. Se fosse meio para atingir objetivos concretos, todos os fins seriam alcançados.
Leitores clamam por indignação, e todos os poderes e personagens públicos tratam de atender a essa edificante máxima: fique indignado por cinco minutos, depois retome suas atividades normais.
O foco das discussões e indignações passa a ser em torno do direito legítimo que têm ou não candidatos a mortos pela fome em saquear o comércio. Não se fala em aceitar o saque como legítimo, mas em apoiar o saque.
A Igreja Católica abre a discussão, estimulando o saque. O Judiciário -por meio do ministro Sepúlveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal (STF)- reitera o direito legítimo ao saque, em caso de sobrevivência.
O Executivo também fica indignado, mas a sua forma. Como somos todos adeptos da racionalidade, contra o paternalismo e a indústria da seca, a prioridade é evitar a exploração da tragédia -não a tragédia em si. E toca a definir uma série de regras burocráticas para impedir abusos -como não conceder auxílio a esse sujeito extraordinariamente privilegiado, que é o aposentado rural recebendo R$ 100 por mês da Previdência, enquanto o flagelado morre de fome.
É a mesma coisa que ocorreu com a dengue: a Saúde só liberando dinheiro para prefeituras que cumprissem todos os requisitos formais do projeto, e o mosquito mordendo as vítimas objetivamente, sem maiores preocupações burocráticas.

Pobres X miseráveis
Na ponta saqueada não estão grandes redes de supermercados -que só operam em centros economicamente interessantes-, nem templos religiosos -protegidos pela religiosidade dos flagelados-, nem próprios públicos e juízes -protegidos pela polícia. A questão se restringe a uma briga mortos de fome contra pequenos comerciantes, eles também depauperados pela crise econômica decorrente da seca.
Com posições diferentes, entre os críticos da situação estão três partidários da não-ação -Executivo, igreja e Judiciário- que dispõem da mais vasta rede de irrigação social do país. Não há um só município do país onde não se veja a presença dessas três instituições. E o que se faz? Fica-se indignado, é claro.
Esta é a verdadeira tragédia nacional: a incapacidade de avançar além da indignação e organizar a solidariedade.
A igreja poderia organizar imediatamente uma rede nacional de coleta de donativos para minorar o curto prazo. Mas, se incentivou os miseráveis a saquearem os pobres, já cumpriu seu papel. Que tal os evangélicos ocuparem esse espaço?
Se juízes também são cidadãos, o Judiciário poderia esquecer-se como poder e assumir-se como organização social, convidando todos seus juízes e funcionários a se integrarem ao mundo real, organizando, em cada vara, outra campanha de coleta de donativos. Mas se já absolve quem saqueia para não morrer de forma -e tem de absolver mesmo- não há por que botar a mão na massa.

Papel do Executivo
Em vez de colocar como centro de suas preocupações o de não permitir que um privilegiado aposentado de R$ 100 possa se beneficiar de donativos oficiais, o Executivo deveria tratar de juntar todas as suas forças e capacidade de mobilização para um tratamento definitivo da questão.
Pois o Programa Comunidade Solidária não foi apresentado como a forma não paternalista de ação social? Pois já não existe uma rede formada por organizações sociais, universidades e outros atores, mobilizando-se em torno de objetivos sociais? Cadê esse povo? E as Forças Armadas? São mobilizadas para apagar incêndios na Amazônia, pois ecologia é tema nobre. Não para impedir a inanição, que é tema pobre.
Finalmente, se a questão não é o paternalismo, mas a solução definitiva de problemas, o que impede o Executivo de juntar todos os seus ministérios e implementar, vez por todas, uma solução definitiva para a região -passando não apenas pela irrigação e açudes, mas pela reforma fundiária, pelo banco do povo para pequenos sitiantes, pelo uso da tecnologia, pela organização econômica dos pequenos agricultores. É o tipo do desafio que, em se querendo, faz.
A discussão sobre o saque em si é a maneira mais cômoda de não ter trabalho, não assumir responsabilidades e de restringir a tragédia ao seu habitat natural. Os saques estão muito longe de Brasília, São Paulo e Rio -locais onde a corte e os poderes formais do país praticam essa nobilíssima briga retórica de brancos, enquanto a bugrada morre de fome.


E-mail: lnassif@uol.com.br



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