São Paulo, quarta-feira, 04 de agosto de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Pequenos sinais

PAULO RABELLO DE CASTRO

Olhe bem à sua volta. Atentamente. Se você estiver num jardim, o de sua casa, ou de uma praça ou parque, a observação atenta é um exercício que lhe trará informações novas, sempre muito interessantes. Você poderá enxergar cores e formas mais complexas e variadas. Um arbusto, por exemplo: veja o formato das folhas. Observe como se agarram ao ramo. Olhando mais de perto ainda, outros sinais vão ficando evidentes. As pequenas formigas subindo e descendo sem parar. Os fungos depositados por baixo das folhas. Aos poucos, todos esses pequenos sinais vão se ampliando e formam um todo diferente, muito mais rico. Você também terá ficado mais rico, de informações e de material para sua própria imaginação.
A economia também funciona exatamente assim. O quadro geral é composto de uma imensa variedade de pequenos e grandes sinais, fractais de informação que lhe trazem a notícia do mundo quase invisível da vida anônima, que mora dentro da moldura da vida publicada, fotografada e comentada pela mídia. Porém a vida anônima é a única que existe, pois a publicada é apenas o produto da nossa imaginação relacional.
Nesse sentido, a ênfase posta nos pequenos sinais da economia, o ajuste fino das relações econômicas individuais, o trato adequado na formação dos preços não são apenas detalhes a mais. Essa atenção, no final, é tudo. Os preços representam sinais informacionais. Cada preço carrega sua carga de mensagem do tipo "compre-não-compre", "faça-não-faça". Nos preços estão embutidos os tributos, os custos do financiamento, até o risco político.
As reformas microeconômicas propostas e veiculadas pelo ministro Palocci e sua equipe carregam o interesse e a atenção a todos esses pequenos sinais. Administrar o macro é estar atento às microdecisões, ao que se passa na vida anônima. Aliás, para certas escolas do pensamento econômico, como a de Chicago, não existe a diferença entre o mundo grande (macro) e o mundo pequeno (micro). Tudo na economia provém da matriz de decisões individuais sobre as quais se incluem "políticas" econômicas de governo, que, como bons ou maus jardineiros, conseguirão estimular conjuntos paisagísticos harmoniosos ou produzir resultados catastróficos ao fim de sua atuação.
Na área tributária, acumulam-se os exemplos negativos. As más interferências na vida dos mercados reduzem as chances de sucesso do conjunto da economia. As recentes mudanças da Cofins, uma contribuição social que nada tem de sociável, trouxeram mais distorções que vantagens, da maneira como foram introduzidas, salvo para o governo, que pensa ter lucrado pelo salto em sua arrecadação. Mas o governo também depende do ecossistema econômico para sobreviver. Quando este enfraquece, o goveno-parasita também se fragiliza e morre.
Há outros aspectos na vida econômica brasileira que permanecem convenientemente esquecidos, embora tendo influência marcante nas decisões individuais que formam o macróide chamado PIB. Esses aspectos são todos relacionados ao crescimento, pois representam a vontade individual de acesso aos mercados, o desejo de posse legítima de bens, o planejamento do futuro familiar, requerendo instrumentos para acumulação de poupanças e capital empresarial.
Em todos esses campos -do crédito, da posse e domínio imobiliário, bem como do mercado de capitais-, nosso desempenho em prover acesso geral às pessoas e garantir a eficácia dos instrumentos tem sido para além de sofrível. Ainda outro dia, aprendi que, para registrar em cartório uma transação de imóvel rural, tornou-se obrigatória, pela lei nš 10.267, de agosto de 2001, a identificação das coordenadas dos limites da propriedade pelo Sistema Geodésico Brasileiro (até aí tudo bem) e "com precisão posicional a ser fixada pelo Incra" (aí complicou). Exige-se a aplicação do sistema GPS "autenticado" pelo Incra.
No frigir dos ovos, dois oficiais de Registro de Imóveis de Cuiabá me lamentavam o fato de não terem podido acolher um só registro de transação rural de imóveis com mais de 1.000 ha, nos últimos meses, exclusivamente por falta da referência geodésica, a ser suprida pelo órgão do governo. A partir de outubro, o limite de vedação de registro baixará para imóveis acima de 500 ha, em todo o Brasil. Num Estado como Mato Grosso, onde o agronegócio abre fronteiras de progresso para todos os brasileiros, esse é apenas mais um exemplo das crescentes dificuldades "microeconômicas" de tentar empreender. São investimentos que, muitas vezes, deixam de ser realizados pelas travas burocráticas erguidas sucessivamente pelo poder público parasitário.
Mas antes fosse só isso.
Na mesma cidade de Cuiabá, será sempre muito mais simples, a qualquer cidadão comum, invadir uma área e ocupá-la com um barraco do que tentar obter acesso legal à propriedade de um pequeno lote regularizado, tamanhas são as travas legais e burocráticas para empreender, comprar ou retomar um imóvel popular.
Crédito, nem pensar. Por isso, com a discreta ajuda do poder político, Cuiabá é hoje cravejada por quase 80 áreas de invasão fundiária urbana, o que teria feito um gestor imobiliário local exclamar, aflito, no título de sua monografia de fim de curso: "Cuiabá, uma grande invasão!". Esse é apenas mais um entre milhares e milhares de outros casos da desordem urbanística do país. Claro está que todas essas impossibilidades vão, aos poucos, roubando a força e a beleza do conjunto macroeconômico chamado Brasil, cujo imenso potencial segue sendo corroído, apesar dos constantes alertas de tantos pequenos sinais.


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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