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São Paulo, quarta-feira, 05 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Qual reforma precede as demais?

PAULO RABELLO DE CASTRO

O brado de protesto, publicado há poucos dias, contra os possíveis rumos neoliberais de uma futura reforma da Previdência Social merece toda a nossa atenção. O artigo ("O Globo", 30/ 01/03, pág. 7) vem subscrito por Paulo César de Souza, que é presidente da Associação Nacional dos Servidores da Previdência Social. Na denúncia, eis o que ele aponta como mais grave: "...Transformaram a Previdência em um problema fiscal quando o problema fiscal é fiscal mesmo (sic), ou seja, os recursos arrecadados são carimbados para pagar a dívida interna e externa. Já que o problema é fiscal, por que não fazer logo a reforma fiscal e a tributária?".
Implícita no questionamento do cidadão está a sugestão de deixar a reforma da Previdência para depois, antes que a executem mal, à frente das demais. Pretendo tentar esclarecer algumas dessas questões. De pronto, é forçoso reconhecer que todas as contas dos entes públicos, sejam eles a União, Estados ou municípios, constituem seu universo fiscal. Não há como separar a conta previdenciária do âmbito fiscal, a menos que estivéssemos caminhando para a solução chilena da previdência (privatização da origem dos recursos e da sua gestão), o que certamente não é o caso aplicável ao Brasil.
Porém o citado articulista tem razão ao protestar contra um certo "foco fiscalista" na questão previdenciária. Estaríamos todos de acordo ao afirmar, por exemplo, que a questão da Previdência transcende ao âmbito fiscal. Embora seja fundamental o equilíbrio da conta previdenciária, o objetivo almejado não é a ausência de um déficit corrente nessa conta. Isso porque, no sistema atual, parte substancial da cobertura dos benefícios pagos mês a mês não advém apenas dos atuais ou futuros beneficiários, mas sim da arrecadação geral de impostos e de contribuições cobradas das empresas.
Portanto é correta a crítica a uma proposta de reforma da Previdência que se limite à necessidade de cobrir o "déficit com recursos fiscais". A crítica procede por ser esse o sistema que está inscrito na nossa Constituição. Por assim dizer, hoje o "déficit é constitucional".
Agora, se esse sistema constitui -como, de fato, é- um modo ruim de definir e executar o financiamento das aposentadorias e pensões, tanto no setor público como no privado, esse gerido pelo INSS, então é por aí que devemos encontrar a motivação correta para uma mudança em profundidade e sem o afã de tentar alterar as pensões já concedidas. A mudança é para o presente, com vistas a um futuro mais bem planejado, do ponto de vista das condições e situações que defrontaremos 10, 20, 30 anos adiante.
Esse, sem dúvida, é o grande enigma a ser decifrado numa reforma para valer: qual é a Previdência que será adequada para nossos filhos ou netos, como contribuintes e, depois, como beneficiários? Que motivação terão as novas gerações em contribuir e que confiança depositarão nas regras de hoje sobre os supostos benefícios de amanhã? Essa é justamente a parte não-fiscal (mas com profundas repercussões fiscais!) da questão previdenciária. Motivação e confiança estão na base de um sistema de relações sociais. Requer práticas adequadas e recorrentes. Requer instituições sólidas e leis amigáveis, fáceis de ser cumpridas.
Mas no sistema atual a Previdência Social administrada pelo poder público, para seus servidores ou para os trabalhadores em geral, não é simples, nem motivadora, nem muito menos gera a confiança decorrente da simplicidade, estabilidade e coerência de suas regras. Por isso é que precisa mudar. Com urgência.
Na questão previdenciária, há sempre dois aspectos correndo paralelamente: o modo de contribuição e aquisição de direitos e, ao lado, o modo de financiamento dos benefícios vertidos. É preciso tentar separar essas duas faces da mesma moeda. O melhor modo de contribuir e adquirir direitos é por meio de contas individuais, em que cada participante enxerga a acumulação gradual de seu pecúlio. É um regime de responsabilidade e de plena cidadania; por isso deveria ser de aplicação geral, irrestrita a todo e qualquer cidadão, em qualquer atividade, em idade de contribuir, até um teto básico predefinido. Essa seria a nova e unificada previdência obrigatória do futuro. O fato de muitos brasileiros permanecerem à margem desse novo sistema não elidiria seu direito a uma assistência previdenciária mínima, por avançada idade, a ser coberta por recursos gerais. Mas essa será a exceção a ser minimizada à medida que o emprego formal avançar e a consciência previdenciária se disseminar, inscrevendo todos no sistema.
Acima do teto dessa previdência básica e universal é que se construirão, também em contas personalizadas, os múltiplos planos complementares, aplicáveis, no setor público, não só aos servidores em geral como às "carreiras de Estado", enquanto no setor privado serão cobertas pelos fundos de pensão, seguradoras, previdências abertas e multipatrocinadas, como hoje já ocorre.
Definido o novo modo de participar, é crucial estabelecer o modo de financiar o sistema como um todo. Aqui, sim, de novo entram as considerações fiscais. De plano, reconhecemos ser impossível reformar a Previdência atual sem concomitantes reformas tributária e trabalhista. Simples de entender. Na transição do sistema atual para o novo, há milhões de aposentadorias a pagar, mês que vem, e depois, e depois. Desonerando o contrato de trabalho de ser a fonte maior desses pagamentos correntes (essa desoneração é fundamental!), passarão os impostos gerais a responder pela maior cobertura dos encargos. Parece-nos que a melhor alternativa de reforma tributária, para o fim de acomodar a paralela reforma previdenciária, é aquela apresentada pelo ex-deputado Luiz Roberto Ponte e defendida por Roberto Campos, de concentrar a chamada "contribuição solidária" da sociedade em alguns tributos de caráter não-declaratório e certas atividades seletivas, evitando-se assim a terrível distorção das incidências generalizadas sobre o faturamento de empresas. Alternativamente, um imposto federal sobre o consumo, do tipo IVA, também se prestaria para identificar as capacidades contributivas de cada cidadão no financiamento solidário das gerações que irão se aposentando ao longo dos próximos anos.
Apesar de complexo e apaixonante, o tema previdenciário precisa ser enfrentado com clareza de conceitos e com total objetividade, para que não se perca mais essa chance, generosamente apresentada ao povo brasileiro, desde que o presidente Lula a transformou numa questão central de sua administração.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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paulo@rcconsultores.com.br


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