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OPINIÃO ECONÔMICA
Qual reforma precede as demais?
PAULO RABELLO DE CASTRO
O brado de protesto, publicado há poucos dias, contra
os possíveis rumos neoliberais de
uma futura reforma da Previdência Social merece toda a nossa
atenção. O artigo ("O Globo", 30/
01/03, pág. 7) vem subscrito por
Paulo César de Souza, que é presidente da Associação Nacional dos
Servidores da Previdência Social.
Na denúncia, eis o que ele aponta
como mais grave: "...Transformaram a Previdência em um problema fiscal quando o problema fiscal é fiscal mesmo (sic), ou seja, os
recursos arrecadados são carimbados para pagar a dívida interna e externa. Já que o problema é
fiscal, por que não fazer logo a reforma fiscal e a tributária?".
Implícita no questionamento
do cidadão está a sugestão de deixar a reforma da Previdência para depois, antes que a executem
mal, à frente das demais. Pretendo tentar esclarecer algumas dessas questões. De pronto, é forçoso
reconhecer que todas as contas
dos entes públicos, sejam eles a
União, Estados ou municípios,
constituem seu universo fiscal.
Não há como separar a conta previdenciária do âmbito fiscal, a
menos que estivéssemos caminhando para a solução chilena da
previdência (privatização da origem dos recursos e da sua gestão),
o que certamente não é o caso
aplicável ao Brasil.
Porém o citado articulista tem
razão ao protestar contra um certo "foco fiscalista" na questão
previdenciária. Estaríamos todos
de acordo ao afirmar, por exemplo, que a questão da Previdência
transcende ao âmbito fiscal. Embora seja fundamental o equilíbrio da conta previdenciária, o
objetivo almejado não é a ausência de um déficit corrente nessa
conta. Isso porque, no sistema
atual, parte substancial da cobertura dos benefícios pagos mês a
mês não advém apenas dos atuais
ou futuros beneficiários, mas sim
da arrecadação geral de impostos
e de contribuições cobradas das
empresas.
Portanto é correta a crítica a
uma proposta de reforma da Previdência que se limite à necessidade de cobrir o "déficit com recursos fiscais". A crítica procede
por ser esse o sistema que está inscrito na nossa Constituição. Por
assim dizer, hoje o "déficit é constitucional".
Agora, se esse sistema constitui
-como, de fato, é- um modo
ruim de definir e executar o financiamento das aposentadorias
e pensões, tanto no setor público
como no privado, esse gerido pelo
INSS, então é por aí que devemos
encontrar a motivação correta
para uma mudança em profundidade e sem o afã de tentar alterar
as pensões já concedidas. A mudança é para o presente, com vistas a um futuro mais bem planejado, do ponto de vista das condições e situações que defrontaremos 10, 20, 30 anos adiante.
Esse, sem dúvida, é o grande
enigma a ser decifrado numa reforma para valer: qual é a Previdência que será adequada para
nossos filhos ou netos, como contribuintes e, depois, como beneficiários? Que motivação terão as
novas gerações em contribuir e
que confiança depositarão nas regras de hoje sobre os supostos benefícios de amanhã? Essa é justamente a parte não-fiscal (mas
com profundas repercussões fiscais!) da questão previdenciária.
Motivação e confiança estão na
base de um sistema de relações sociais. Requer práticas adequadas
e recorrentes. Requer instituições
sólidas e leis amigáveis, fáceis de
ser cumpridas.
Mas no sistema atual a Previdência Social administrada pelo
poder público, para seus servidores ou para os trabalhadores em
geral, não é simples, nem motivadora, nem muito menos gera a
confiança decorrente da simplicidade, estabilidade e coerência de
suas regras. Por isso é que precisa
mudar. Com urgência.
Na questão previdenciária, há
sempre dois aspectos correndo
paralelamente: o modo de contribuição e aquisição de direitos e,
ao lado, o modo de financiamento dos benefícios vertidos. É preciso tentar separar essas duas faces
da mesma moeda. O melhor modo de contribuir e adquirir direitos é por meio de contas individuais, em que cada participante
enxerga a acumulação gradual
de seu pecúlio. É um regime de
responsabilidade e de plena cidadania; por isso deveria ser de aplicação geral, irrestrita a todo e
qualquer cidadão, em qualquer
atividade, em idade de contribuir, até um teto básico predefinido. Essa seria a nova e unificada
previdência obrigatória do futuro. O fato de muitos brasileiros
permanecerem à margem desse
novo sistema não elidiria seu direito a uma assistência previdenciária mínima, por avançada
idade, a ser coberta por recursos
gerais. Mas essa será a exceção a
ser minimizada à medida que o
emprego formal avançar e a consciência previdenciária se disseminar, inscrevendo todos no sistema.
Acima do teto dessa previdência básica e universal é que se
construirão, também em contas
personalizadas, os múltiplos planos complementares, aplicáveis,
no setor público, não só aos servidores em geral como às "carreiras
de Estado", enquanto no setor
privado serão cobertas pelos fundos de pensão, seguradoras, previdências abertas e multipatrocinadas, como hoje já ocorre.
Definido o novo modo de participar, é crucial estabelecer o modo de financiar o sistema como
um todo. Aqui, sim, de novo entram as considerações fiscais. De
plano, reconhecemos ser impossível reformar a Previdência atual
sem concomitantes reformas tributária e trabalhista. Simples de
entender. Na transição do sistema atual para o novo, há milhões
de aposentadorias a pagar, mês
que vem, e depois, e depois. Desonerando o contrato de trabalho
de ser a fonte maior desses pagamentos correntes (essa desoneração é fundamental!), passarão os
impostos gerais a responder pela
maior cobertura dos encargos.
Parece-nos que a melhor alternativa de reforma tributária, para o
fim de acomodar a paralela reforma previdenciária, é aquela apresentada pelo ex-deputado Luiz
Roberto Ponte e defendida por
Roberto Campos, de concentrar a
chamada "contribuição solidária" da sociedade em alguns tributos de caráter não-declaratório
e certas atividades seletivas, evitando-se assim a terrível distorção das incidências generalizadas
sobre o faturamento de empresas.
Alternativamente, um imposto
federal sobre o consumo, do tipo
IVA, também se prestaria para
identificar as capacidades contributivas de cada cidadão no financiamento solidário das gerações que irão se aposentando ao
longo dos próximos anos.
Apesar de complexo e apaixonante, o tema previdenciário precisa ser enfrentado com clareza
de conceitos e com total objetividade, para que não se perca mais
essa chance, generosamente apresentada ao povo brasileiro, desde
que o presidente Lula a transformou numa questão central de sua
administração.
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br
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