São Paulo, quinta-feira, 05 de fevereiro de 2004

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COMÉRCIO

Antes na defensiva, sul-americanos reclamam de proposta dos EUA para uma Alca menos liberal

Mercosul agora acusa ricos de protecionismo

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PUEBLA

O Mercosul acusa os países ricos das Américas de protecionismo, numa inversão total da lógica que prevalecia até então nas negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), na qual os países do sul eram os acusados de uma atitude defensiva.
"É um paradoxo os países que se dizem favoráveis ao livre comércio pretenderem restringi-lo", reclama o chanceler Celso Amorim, em conversa por telefone com a Folha.
O ministro alude ao fato de que o documento apresentado pelo G13 (conjunto de países liderados pelos únicos ricos da Alca, Estados Unidos e Canadá) propõe liberalizar "substancialmente" todo o comércio, mas não todo ele, ao contrário da proposta do Mercosul, que é de zerar todas as tarifas de importação, ainda que de forma escalonada (imediatamente, em cinco anos, em dez anos e em mais de dez anos).
Reforça essa noção, com uma ironia, o chefe da delegação argentina para as negociações da Alca, o vice-chanceler Martín Redrado: "Estamos à direita deles".
O usual é que os liberalizadores sejam considerados de "direita", ao passo que os protecionistas seriam de "esquerda".

Conseqüência
Do lado dos ricos, admite-se francamente o retrocesso na posição liberalizadora, com o argumento de que, como houve uma redução geral do nível de ambições na negociação da Alca, a proposta de derrubada de tarifas também foi menos ambiciosa.
É uma alusão ao fato de que países como Canadá e EUA queriam que a Alca não fosse apenas uma questão de comércio de bens, mas também criasse regras liberais para investimentos, compras do governo e serviços, entre outros.
Nessas, o Mercosul é que ficou na defensiva, até obter, na Conferência Ministerial de Miami, em novembro, uma "Alca light", que prevê um conjunto comum de direitos e obrigações válidos para todos os 34 países da negociação e, em um segundo nível, acordos plurilaterais mais ambiciosos, mas não obrigatórios.
Agora, "se o nível de ambição é baixo, será baixo em todos os temas", diz, por exemplo, Alícia Frohmann, diretora-geral de Relações Econômicas Internacionais do governo chileno, um dos países que assinaram o texto do G13 (que ontem, aliás, passou a ser G14, uma vez que El Salvador aderiu ao grupo).
A troca de acusações sobre quem é ou não ambicioso está levando a um impasse a 17ª reunião do CNC (Comitê de Negociações Comerciais), principal instância técnica da Alca, o que põe em perigo todo o processo negociador.
Afinal, dessa reunião devem sair as instruções para os diferentes grupos negociadores, de forma que se possa entrar de fato na formatação da Alca até o fim do ano, prazo estabelecido desde o início das negociações e reafirmado em Miami.
Se não houver acordo, não haverá instruções, não haverá negociações e, ou desanda todo o processo ou, no mínimo, torna-se inteiramente inviável a data de janeiro de 2005 para que feche a negociação.
O prazo para um acordo começa a ficar curto: a reunião do CNC termina amanhã e, até ontem, não havia começado uma verdadeira negociação para superar as divergências.
"Os países estão entrincheirados em seus documentos", afirma a delegada chilena Frohmann, pelo lado do G14.
"O primeiro movimento tem que ser deles", retruca, pelo Mercosul, o argentino Redrado.
Mas esse cenário que parece indicar um impasse não assusta, pelo menos não ainda, de acordo com o ministro Celso Amorim: "Se for medir os problemas pelo número de telefonemas alarmados que recebo, posso dizer que têm sido bem poucos".
A chilena Frohmann até concorda que seria possível vencer as dificuldades técnicas da negociação, desde que houvesse vontade política.
"E há"?, questionou a Folha.
"Se há, está muito dissimulada", respondeu a delegada chilena.

Nó principal
O curioso é que o grande nó, o que pode levar ao impasse definitivo, é uma única palavra: "substancialmente". Se o G14 retirar essa palavra e, por extensão, concordar que deverão ser eliminadas as tarifas para todo o comércio hemisférico, em vez de apenas para "substancialmente todo o comércio", há grandes chances de que se ultrapassem os outros obstáculos.
As chances de a palavra ser retirada só começariam a ficar mais claras na noite de ontem, em jantar teoricamente social para o qual Peter Allgeier, o co-presidente pelos Estados Unidos das negociações para a Alca, convidou Argentina, Brasil, Uruguai, Equador, Canadá, Chile, México, Costa Rica e um representante do Caricom (a comunidade dos países do Caribe).
Pelo menos um ponto positivo estará presente no jantar: a proposta do grupo liderado pelos EUA para o segundo trilho da Alca (os acordos plurilaterais não-obrigatórios) é quase pacífica. O Mercosul só tem uma objeção: reivindica que os países que se inscreverem como observadores para as negociações desses acordos tenham direito a voz, o que é vetado pelo texto do outro grupo.


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