São Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Licença para gastar

O Brasil virou credor do resto do mundo; o governo segue devendo, se não para o exterior, para o resto da sociedade

O ANÚNCIO da transformação do país de devedor em credor externo gerou mais furor do que eu poderia imaginar após a leitura da nota do Banco Central que divulgou o acontecimento. A rigor, a proclamação da façanha é mais um marco simbólico que qualquer outra coisa, dado que o Brasil já havia passado pelo ajuste de suas contas externas ao longo de vários anos, tendo registrado superávits em suas transações correntes desde 2003.
Nesse sentido, mais relevantes que a passagem em si são as reações que esta provocou, em particular a noção de que, uma vez liquidada a dívida externa, chegamos à hora do gasto. Tal idéia, por incrível que possa parecer, não é de todo indevida, desde que se tenha nítido quem se tornou credor (e pode, portanto, desfrutar dessa condição) e quem continua devedor. O Brasil, isto é, o conjunto da sociedade brasileira, tornou-se credor do resto do mundo; em contraste, o governo brasileiro segue devendo, se não para o exterior, para o resto da sociedade.
Essa distinção está longe de ser mero detalhe. O surgimento de um expressivo superávit em conta corrente nos últimos cinco anos esteve associado a uma redução significativa do dispêndio privado: o consumo das famílias, equivalente a 63,8% do PIB entre 1995 e 2002, reduziu-se a 60,5% do PIB entre 2003 e 2007; o investimento privado, por sua vez, veio de 16,7% do PIB para 16,2% do PIB no mesmo período. Em outras palavras, o setor privado contribuiu com uma redução equivalente a 4% do PIB em seus gastos. Em contraste, o setor público diminuiu seu consumo em apenas 0,5% do PIB ao longo desse mesmo período. Esses números definem claramente quem fez (e quem não fez) os sacrifícios para que nos transformássemos em credores internacionais.
Já o setor público não se tornou credor. Houve redução da dívida pública, é verdade, e uma mudança dramática em sua composição, já que hoje o governo tem mais ativos que passivos em moeda estrangeira (o que se provou fundamental para a solidez da economia ante a crise internacional), mas, no conjunto de dívida externa e interna, o governo ainda deve à sociedade pouco mais de 40% do PIB.
À luz dessas considerações, nosso ajuste externo permite ao setor privado retomar seus gastos, em particular os investimentos. Como já tive a oportunidade de argumentar neste espaço, cada 1% do PIB a mais de investimento eleva a capacidade de crescimento sustentável do país em algo como 0,2% ao ano, ou seja, precisamos elevar nosso investimento em 5% do PIB para crescermos 1% ao ano mais rápido do que podemos hoje.
Mesmo, porém, que o consumo das famílias se mantenha nos patamares atuais, a elevação do investimento implica redução do superávit externo caso o gasto público não compense tal aumento. Na ausência, pois, de uma política fiscal mais austera, a expansão do gasto privado irá levar ao reaparecimento dos déficits externos. Contudo, ante a eliminação da dívida externa, o ressurgimento desses déficits é um fenômeno bem menos preocupante do que já foi.
Vale dizer, a conclusão é que, sim, a sociedade brasileira pode aumentar seus gastos (e investimentos são, como sempre, bem-vindos) agora que a dívida externa se foi. Isso dito, o setor público, ainda endividado, não deveria ter nenhum motivo para interpretar esse fato como licença para persistir no esbanjamento, muito menos aumentá-lo.


ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 45, é economista-chefe para América Latina do Banco Real, doutor pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.
Internet: http://www.maovisivel.blogspot.com

@: alexandre.schwartsman@hotmail.com


Texto Anterior: Outro lado: "Festa não afeta fiscalização", diz delegado
Próximo Texto: Receita investigará 37 mil por omissão de rendimento
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.