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ALEXANDRE SCHWARTSMAN
Licença para gastar
O Brasil virou credor do resto
do mundo; o governo segue
devendo, se não para o exterior,
para o resto da sociedade
O ANÚNCIO da transformação
do país de devedor em credor
externo gerou mais furor do
que eu poderia imaginar após a leitura da nota do Banco Central que
divulgou o acontecimento. A rigor, a
proclamação da façanha é mais um
marco simbólico que qualquer outra
coisa, dado que o Brasil já havia passado pelo ajuste de suas contas externas ao longo de vários anos, tendo registrado superávits em suas
transações correntes desde 2003.
Nesse sentido, mais relevantes que a
passagem em si são as reações que
esta provocou, em particular a noção de que, uma vez liquidada a dívida externa, chegamos à hora do gasto.
Tal idéia, por incrível que possa
parecer, não é de todo indevida, desde que se tenha nítido quem se tornou credor (e pode, portanto, desfrutar dessa condição) e quem continua devedor. O Brasil, isto é, o conjunto da sociedade brasileira, tornou-se credor do resto do mundo;
em contraste, o governo brasileiro
segue devendo, se não para o exterior, para o resto da sociedade.
Essa distinção está longe de ser
mero detalhe. O surgimento de um
expressivo superávit em conta corrente nos últimos cinco anos esteve
associado a uma redução significativa do dispêndio privado: o consumo
das famílias, equivalente a 63,8% do
PIB entre 1995 e 2002, reduziu-se a
60,5% do PIB entre 2003 e 2007; o
investimento privado, por sua vez,
veio de 16,7% do PIB para 16,2% do
PIB no mesmo período. Em outras
palavras, o setor privado contribuiu
com uma redução equivalente a 4%
do PIB em seus gastos. Em contraste, o setor público diminuiu seu consumo em apenas 0,5% do PIB ao
longo desse mesmo período. Esses
números definem claramente quem
fez (e quem não fez) os sacrifícios
para que nos transformássemos em
credores internacionais.
Já o setor público não se tornou
credor. Houve redução da dívida pública, é verdade, e uma mudança
dramática em sua composição, já
que hoje o governo tem mais ativos
que passivos em moeda estrangeira
(o que se provou fundamental para a
solidez da economia ante a crise internacional), mas, no conjunto de
dívida externa e interna, o governo
ainda deve à sociedade pouco mais
de 40% do PIB.
À luz dessas considerações, nosso
ajuste externo permite ao setor privado retomar seus gastos, em particular os investimentos. Como já tive
a oportunidade de argumentar neste espaço, cada 1% do PIB a mais de
investimento eleva a capacidade de
crescimento sustentável do país em
algo como 0,2% ao ano, ou seja, precisamos elevar nosso investimento
em 5% do PIB para crescermos 1%
ao ano mais rápido do que podemos
hoje.
Mesmo, porém, que o consumo
das famílias se mantenha nos patamares atuais, a elevação do investimento implica redução do superávit
externo caso o gasto público não
compense tal aumento. Na ausência, pois, de uma política fiscal mais
austera, a expansão do gasto privado
irá levar ao reaparecimento dos déficits externos. Contudo, ante a eliminação da dívida externa, o ressurgimento desses déficits é um fenômeno bem menos preocupante do
que já foi.
Vale dizer, a conclusão é que, sim,
a sociedade brasileira pode aumentar seus gastos (e investimentos são,
como sempre, bem-vindos) agora
que a dívida externa se foi. Isso dito,
o setor público, ainda endividado,
não deveria ter nenhum motivo para interpretar esse fato como licença
para persistir no esbanjamento,
muito menos aumentá-lo.
ALEXANDRE SCHWARTSMAN, 45, é economista-chefe
para América Latina do Banco Real, doutor pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central.
Internet: http://www.maovisivel.blogspot.com
@: alexandre.schwartsman@hotmail.com
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