São Paulo, quinta, 5 de março de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Geisel sobre política externa

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Lê-se cada vez menos, mas publica-se cada vez mais, inclusive muita coisa que deveria ficar rigorosamente inédita. Antigamente, ter livros publicados era uma distinção e uma honra. Hoje, não. Até analfabetos matriculados ostentam livros em seus currículos. Generalizou-se o hábito de publicar as idéias que não se tem. E tudo em péssimo estilo.
A falta de critério editorial é visível. As prateleiras das nossas estantes rangem sob o peso da profusão de bobagens que saem do prelo continuamente. E, como sempre, os livros que mais vendem e mais repercutem são de uma banalidade à toda prova.
Os economistas têm dado a sua contribuição. Mas não vou dar exemplos. Não é de economistas que quero falar hoje, mas de um livro recente que não teve a repercussão merecida. Provavelmente porque destoa bastante dos consensos beócios das últimas duas décadas.
Refiro-me ao depoimento do presidente Ernesto Geisel ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas. O livro foi organizado por Maria Celina D'Araujo e Celso Castro e lançado pela editora da FGV em 1997.
Merecem especial destaque os capítulos que tratam do seu período na Presidência da República, da presença do Estado na economia e de política internacional. Por falta de espaço, vou tratar só deste último aspecto.
No século 20, e particularmente depois da Segunda Guerra, o relacionamento com os EUA foi sempre o tema central da política externa do Brasil e demais países latino-americanos. O período Geisel caracterizou-se, nesse terreno, pelo esforço de manter uma postura mais independente.
O depoimento do presidente traz a marca do que foi a política externa do seu governo: um nacionalismo moderado, algo que é relativamente raro na história brasileira. Em geral, o nosso posicionamento internacional oscila entre arroubos antiamericanos, retóricos e demagógicos, e a subordinação mais ou menos descarada em relação aos EUA. Esta última é, como se sabe, a linha dominante.
Geisel tinha consciência disso. Observou que nos governos militares anteriores, inclusive no de Médici, "o Ministério das Relações Exteriores procurava fazer boa figura, aparecer e prestar serviços aos Estados Unidos". (Vejam que o comportamento atual do Itamaraty tem raízes relativamente fundas.)
Geisel sustentava, ao contrário, que a política externa brasileira tinha que ser "realista e, tanto quanto possível, independente". Sabia evidentemente o peso que tinham as pressões americanas, mas não aceitava que andássemos "demasiadamente a reboque dos Estados Unidos".
O seu apelo era modesto. Pedia apenas que tivéssemos "um pouco mais de soberania, um pouco mais de independência" e não fossemos "tão subservientes em relação aos Estados Unidos".
Bem. Há quem diga que, num país como o nosso, uma frase como essa pode parecer quixotesca e até utópica. Seja como for, é um apelo que guarda toda a sua atualidade na era FHC. Desde Castelo Branco, não se via no Brasil um governo tão alinhado à agenda dos EUA.
Esse alinhamento não seria problemático se as relações entre as nações fossem marcadas pela benevolência e pela cooperação. Mas, como mostra o depoimento do presidente Geisel, o jogo norte-americano é pesado. Geisel relatou as pressões e até chantagens que sofreu quando divergiu da posição dos EUA, especialmente em matéria nuclear. As passagens em questão constituem leitura edificante.
O presidente chegou a afirmar que "a orientação do governo americano é de natureza imperialista" e que as relações com os Estados Unidos tornaram-se "muito desagradáveis" em seu governo.
A certa altura, Geisel comentou "en passant" que o seu ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, "era mais conciliador, mais inclinado a ceder aos americanos em várias questões, para colher boa vontade e apoio para os nossos problemas financeiros (...)".
Notem bem: apoio para nossos problemas financeiros. Nesse comentário, há mais do que pode parecer à primeira vista e do que reconheceu o próprio Geisel. É verdade que, no seu governo, ensaiou-se a retomada de um projeto nacional. Mas o projeto tinha um calcanhar-de-aquiles: a dependência em relação ao capital externo como fonte de financiamento do desenvolvimento econômico. Entre 1974 e 1978, acumularam-se desequilíbrios e passivos externos que foram tornando a economia mais e mais vulnerável.
Com os choques externos do final dos anos 70 e início dos anos 80, o governo brasileiro acabou de pires na mão, à mercê das demandas dos Estados Unidos. Ao longo dos anos 80, a crise da dívida externa acabaria desarticulando gradualmente as resistências nacionais à pressão dos interesses externos e seus parceiros domésticos.
O endividamento externo é o cavalo de Tróia dos projetos de desenvolvimento nacional.


Paulo Nogueira Batista Jr., 42, professor da Fundação Getúlio Vargas e pesquisador-visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@uol.com.br



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