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São Paulo, quinta-feira, 05 de junho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A importância de não ser economista

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Quando antonio Palocci Filho foi escolhido ministro da Fazenda, fiquei feliz. O novo ministro tinha pelo menos duas vantagens importantes. Primeira: não era economista (fato que o presidente da República, aliás, sempre faz questão de salientar). Não sendo economista, estava, em princípio, livre de todos os vícios, taras e deformações dessa nossa profissão algo sinistra.
Quando o seu nome foi ventilado, a imprensa entrou em frenética atividade. Deram busca em todos os arquivos. E logo instalou-se o pânico nas redações. Ninguém encontrou nenhuma frase comprometedora do novo ministro, nenhuma previsão errada, nenhum conceito tosco ou mal trabalhado. Nada. O futuro titular da Fazenda era inteiramente virgem de bobagens econômicas. Os jornais ficaram à míngua (imagine-se, por outro lado, se a escolha de Lula tivesse recaído sobre certos economistas do PT...).
Segunda vantagem: Palocci não falava inglês. Todos estão solidamente convencidos de que falar inglês é fundamental. É um equívoco. O brasileiro monoglota está automaticamente salvo de vários tipos de constrangimento. Por exemplo: não corre o risco de ter estudado nos EUA. O brasileiro (com poucas exceções) é estruturalmente incapaz de estudar nos EUA ou na Europa. Volta, em geral, solidamente catequizado e colonizado. Todas as suas inibições de subdesenvolvido são multiplicadas por mil. A sua capacidade de pensar por conta própria, se algum dia existiu, desaparece sem deixar rastros.
Nos seus contatos com estrangeiros, credores, investidores e superpotências, Palocci terá sempre a protegê-lo a inexpugnável barreira linguística ou, na pior das hipóteses, a barreira de um intérprete.
Figure-se, leitor, a seguinte cena. Um representante da hiperpotência lança contra o nosso ministro da Fazenda uma frase forte, uma exigência descabida qualquer. Palocci se faz de desentendido. Entra em ação o intérprete. Enquanto isso, o ministro pensa. Usa os preciosos segundos para preparar a resposta certeira e fulminante. E o dia está salvo.
Assim fantasiava eu. Mas, como sabemos, alegria de subdesenvolvido dura pouco. O ministro Palocci cercou-se de uma equipe de economistas ortodoxos, alguns recém-saídos da academia, muitos com passagem por universidades norte-americanas ou instituições financeiras. O Ministério da Fazenda e o Banco Central passaram a ser dirigidos, em grande medida, por um grupo razoavelmente coeso de economistas, banqueiros, financistas ou candidatos a tal. De vez em quando, muito raramente, nota-se a presença de um economista petista por lá, sobrevivendo a duras penas no meio da selva ortodoxa.
Há poucas semanas, fui a Brasília, pela segunda vez, conversar com o ministro Palocci. O diálogo com ele é interessante. Trata-se de um político ponderado e inteligente. Mas, logo que cheguei ao Ministério da Fazenda, ocorreu um fato que me deixou um pouco inquieto. Na ante-sala ministerial, estava um dos assessores do ministro, um economista recém-chegado de longa permanência em Washington, que me deu notícias entusiasmadas sobre ele: "O Palocci me impressiona mais a cada dia. Está demonstrando uma compreensão fantástica dos problemas. Até parece um economista, com Ph.D. por uma das melhores universidades dos Estados Unidos". O leitor pode bem imaginar o meu mudo e desolado escândalo.
Palocci me recebe, cordial e sorridente, e vai escutando pacientemente o meu rol de preocupações e fixações (Alca, vulnerabilidade externa, valorização do real, reservas, juros etc.). A cada passo, interrompe com observações e questionamentos pertinentes. Entretanto, à medida que a conversa fluía, fui percebendo que o ministro estava, de fato, com ares de economista -algo que não notara em nosso encontro anterior. Em alguns momentos, passava a impressão de já ter opiniões firmes e consolidadas sobre temas econômicos altamente controvertidos.
Declarações dos últimos dias sugerem que a conversão do ministro da Fazenda em economista continua avançando. O objetivo do governo é "matar e esquartejar a inflação", não apenas reduzi-la, esclareceu Palocci. "Não há como gerar crescimento e enfrentar a inflação ao mesmo tempo", garantiu. Segundo ele, tolerar a inflação "leva a um desastre absolutamente certo". Descartou, também, redução de juros com controle cambial e políticas para evitar a queda do dólar.
Para completar o quadro, reclamou da "pobreza" do debate econômico no Brasil. Enquanto tratamos de temas macroeconômicos, disse Palocci, "o mundo inteiro está discutindo microeconomia" (onde será que ele foi buscar essa pérola?). Só faltou entremear as explicações com expressões em inglês.
Todas essas afirmações do ministro da Fazenda são discutíveis e preocupantes, para dizer o mínimo. Se não houver cuidado e equilíbrio, o governo corre o risco de "esquartejar" a economia e o emprego. Os sintomas de que esse risco existe são cada vez mais perceptíveis. Mas, como notou o senador Eduardo Suplicy, dos 55 parágrafos da ata da última reunião do Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central), em que se decidiu manter os juros básicos em 26,5%, apenas dois tratam do mercado de trabalho e do nível de emprego.
É uma lástima. O ministro da Fazenda não tem por que se comprometer com dogmas econômicos e teses potencialmente perigosas. Nem deveria mimetizar os rituais e preconceitos da ortodoxia econômica.
Por isso, lanço aqui o apelo enfático: não queira ser economista, Palocci! Continue político, médico sanitarista e monoglota.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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