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RUBENS RICUPERO
Falsos começos
Desde que, há 22 anos, terminou a ditadura, a história do Brasil tem sido uma
sucessão de falsos começos
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ARRASTANDO pés preguiçosos
em chinelas puídas, certos governos supostamente "novos" são como um bocejo interminável. Abandonados os ideais pelo caminho, sem apetite nem competência para ação efetiva, o que ficou?
Só o gosto insaciável pelos cargos, as
verbas, a vanglória do poder como
fim em si mesmo, não para construir
algo.
Pude comparar a variedade de começos possíveis em vagarosa peregrinação pela minha diáspora familiar e afetiva, espalhada quase toda
ao longo do arco dos Alpes. De Genebra a Klosters, último refúgio de
Greta Garbo; de lá, pela Engadina,
saindo do mundo real para entrar no
das paisagens de folhinha ou tampa
de caixas de bombons: Mustair, as
aldeias com igrejinhas de torre de
cebola, as fontes e arcos de pedra,
"montes e a paz que há neles, pois
são longe".
Descendo pelo Tirol do Sul, Bolzano, Trento, subindo de novo a Courmayeur, ao encontro da geleira do
Mont Blanc, aqui e ali, conversando
com tios, primos, filhas, genros, amigos. Da última vez que fiz isso, a sensação era de fim de reino. Chirac, Blair, Schröder, Berlusconi, Aznar,
Arafat, Sharon, o papa Wojtyla, Kofi
Annan, um a um se afogavam no crepúsculo.
Agora, a impressão é de começo
em toda parte, salvo no caso da malevolente dupla Bush-Cheney, que
não acaba de morrer.
Começos há de todos os tipos. Alguns penam para se arrancarem da
sombra anterior. Outros, como as
falsas partidas nos hipódromos, são
anulados devido à sofreguidão ou ao
jogo sujo.
Desde que, há 22 anos, terminou a
ditadura, a história do Brasil tem sido uma sucessão de falsos começos.
A morte de Tancredo antes de tomar
posse agourou a Nova República
com uma espécie de maldição de
projetos truncados.
Mesmo os governos reeleitos não
passa(ra)m de começos. Caíram no
erro apontado por Vaclav Havel: reduzir a política à macroeconomia.
Ao subordinarem a ação construtiva
à miragem fugidia das perfeitas condições econômicas, condenam-se a
um começo perpetuamente adiado.
Absorvem-se nos fundamentos e esquecem-se de levantar as paredes.
A mais recente de nossas ilusões
atribuía a Luiz Inácio Lula da Silva e
ao PT a tarefa de edificar, sobre as
bases da estabilidade refeita, a casa
acolhedora para dar conforto ao povo de um Brasil renovado. A eleição
de um ex-operário à Presidência e
de um partido popular era, nesse sonho, o sinal de um novo começo.
Quem sabe até como o da etapa iniciada em 1930 para esgotar-se em
1964 e que havia sido anunciada pelas revoluções políticas e culturais
dos anos 20.
Tudo isso soa irrisório diante de
governo que vai completar cinco
anos sem sair dos prolegômenos. A
geléia geral que lhe dá (?) sustentação no Congresso não serve, como
na Inglaterra de Brown ou na França de Sarkozy, para votar em poucas
semanas todo o programa legislativo necessário.
É como piche melequento que
imobiliza a mão de quem quiser tocar avante qualquer projeto. O conceito é novo em política: maioria não
para fazer, mas para não fazer. Que
remédio? Após três anos ou mais aos
quais não há de faltar quinhão de escândalos, caos e barbárie, só nos restará recomeçar de novo.
Até que um dia sentiremos talvez
o que senti, dias atrás, na bucólica
festa em que os suíços evocam o
Pacto de 1291, seu distante começo.
Para eles, já não há começo nem fim,
apenas um meio de remanso e paz.
Como na promessa do Senhor: farei
a paz fluir para ti, Jerusalém, como
um rio.
RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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