São Paulo, domingo, 05 de agosto de 2007

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RUBENS RICUPERO

Falsos começos


Desde que, há 22 anos, terminou a ditadura, a história do Brasil tem sido uma sucessão de falsos começos

ARRASTANDO pés preguiçosos em chinelas puídas, certos governos supostamente "novos" são como um bocejo interminável. Abandonados os ideais pelo caminho, sem apetite nem competência para ação efetiva, o que ficou?
Só o gosto insaciável pelos cargos, as verbas, a vanglória do poder como fim em si mesmo, não para construir algo.
Pude comparar a variedade de começos possíveis em vagarosa peregrinação pela minha diáspora familiar e afetiva, espalhada quase toda ao longo do arco dos Alpes. De Genebra a Klosters, último refúgio de Greta Garbo; de lá, pela Engadina, saindo do mundo real para entrar no das paisagens de folhinha ou tampa de caixas de bombons: Mustair, as aldeias com igrejinhas de torre de cebola, as fontes e arcos de pedra, "montes e a paz que há neles, pois são longe".
Descendo pelo Tirol do Sul, Bolzano, Trento, subindo de novo a Courmayeur, ao encontro da geleira do Mont Blanc, aqui e ali, conversando com tios, primos, filhas, genros, amigos. Da última vez que fiz isso, a sensação era de fim de reino. Chirac, Blair, Schröder, Berlusconi, Aznar, Arafat, Sharon, o papa Wojtyla, Kofi Annan, um a um se afogavam no crepúsculo.
Agora, a impressão é de começo em toda parte, salvo no caso da malevolente dupla Bush-Cheney, que não acaba de morrer.
Começos há de todos os tipos. Alguns penam para se arrancarem da sombra anterior. Outros, como as falsas partidas nos hipódromos, são anulados devido à sofreguidão ou ao jogo sujo.
Desde que, há 22 anos, terminou a ditadura, a história do Brasil tem sido uma sucessão de falsos começos.
A morte de Tancredo antes de tomar posse agourou a Nova República com uma espécie de maldição de projetos truncados.
Mesmo os governos reeleitos não passa(ra)m de começos. Caíram no erro apontado por Vaclav Havel: reduzir a política à macroeconomia.
Ao subordinarem a ação construtiva à miragem fugidia das perfeitas condições econômicas, condenam-se a um começo perpetuamente adiado. Absorvem-se nos fundamentos e esquecem-se de levantar as paredes.
A mais recente de nossas ilusões atribuía a Luiz Inácio Lula da Silva e ao PT a tarefa de edificar, sobre as bases da estabilidade refeita, a casa acolhedora para dar conforto ao povo de um Brasil renovado. A eleição de um ex-operário à Presidência e de um partido popular era, nesse sonho, o sinal de um novo começo.
Quem sabe até como o da etapa iniciada em 1930 para esgotar-se em 1964 e que havia sido anunciada pelas revoluções políticas e culturais dos anos 20.
Tudo isso soa irrisório diante de governo que vai completar cinco anos sem sair dos prolegômenos. A geléia geral que lhe dá (?) sustentação no Congresso não serve, como na Inglaterra de Brown ou na França de Sarkozy, para votar em poucas semanas todo o programa legislativo necessário.
É como piche melequento que imobiliza a mão de quem quiser tocar avante qualquer projeto. O conceito é novo em política: maioria não para fazer, mas para não fazer. Que remédio? Após três anos ou mais aos quais não há de faltar quinhão de escândalos, caos e barbárie, só nos restará recomeçar de novo.
Até que um dia sentiremos talvez o que senti, dias atrás, na bucólica festa em que os suíços evocam o Pacto de 1291, seu distante começo.
Para eles, já não há começo nem fim, apenas um meio de remanso e paz.
Como na promessa do Senhor: farei a paz fluir para ti, Jerusalém, como um rio.


RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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