São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Investimento e financiamento domésticos

LUCIANO COUTINHO

A sustentação do crescimento não se materializará sem a criação de um sistema de financiamento baseado em crédito e poupança domésticos. É consenso que a economia brasileira demanda com urgência um acréscimo de investimentos (especialmente em logística e em energia) equivalentes a cinco pontos percentuais do PIB (Produto Interno Bruto) por ano. Como, então, financiar US$ 27 bilhões adicionais por ano em inversões fixas?
É inelutável que esse financiamento provenha de três fontes, a saber: 1) da expansão do crédito bancário privado; 2) da ampliação da oferta de poupanças domésticas; e 3) do aumento dos investimentos diretos externos (IDE). A imprescindibilidade da expansão do financiamento doméstico (complementado pelo fluxo do IDE) decorre das seguintes constatações: a) não é sensato, nem viável, contar maciçamente com empréstimos externos dada a necessidade de reduzir os indicadores de dívida externa/PIB e de dívida externa/exportações para a queda segura e expressiva nos próximos anos da taxa de risco-país, em direção ao status de "investment grade"; b) também não é possível contar com o aumento do endividamento público interno diante da necessidade de alongar significativamente o perfil temporal, reduzir a taxa Selic e solidificar a confiança na gestão da dívida pública; c) finalmente, não é factível concentrar nas instituições financeiras federais (especialmente no BNDES) toda a tarefa de financiar os novos investimentos.
Não será fácil expandir o financiamento de base doméstica. Desde logo, o sistema bancário se vê contido por circunstâncias que dificultam sobremodo a sua expansão. Vejamos. Depois de um longo período de alta incerteza econômica e jurídica, baixo crescimento e instabilidade macroeconômica, a razão crédito privado/PIB retraiu-se para cerca de 26%. A rápida expansão da dívida pública na segunda metade dos anos 90, com juros reais elevadíssimos, absorveu parcela crescente das operações ativas do sistema. Simultaneamente, o governo subiu a carga tributária sobre a atividade financeira e, para facilitar a rolagem da dívida pública, o Banco Central mantém os depósitos compulsórios muito elevados (de 45% sobre os depósitos à vista e de 15% sobre os depósitos a prazo). Ademais, a oferta de crédito de longo prazo está severamente limitada pela dificuldade de captar poupanças de longa maturação, posto que os investidores brasileiros ficaram viciados em ativos de renda fixa com prazos curtos, liquidez e juros altos.
A superação desse bloqueio ao financiamento doméstico demanda um conjunto de reformas institucionais e legais que criem confiança e segurança nas operações de crédito, reduzam os "spreads" bancários e viabilizem a rápida expansão da capacidade de financiar investimentos. O desenvolvimento de modalidades de securitização através da vinculação de recebíveis e de outras garantias eficazes, bem como a aprovação e a aplicação efetiva da nova Lei de Falências, são passos urgentes. Aperfeiçoamentos também são necessários para reduzir a incerteza dos processos legais e para expeditar seus procedimentos.
Além dessas reformas, uma queda significativa dos "spreads" de risco depende do aumento da concorrência bancária através da implantação de uma nova central de informações cadastrais, positiva e com alta transparência, para viabilizar uma drástica redução da assimetria de informações. O desenvolvimento concorrente do mercado de capitais através da expansão de fundos de recebíveis, de debêntures e ações e de novos instrumentos híbridos também deve ser estimulado. Os incentivos tributários à poupança de longo prazo, recentemente anunciados pelo ministro da Fazenda, são passos positivos que devem ser complementados por novas iniciativas.
A demonstração de que o crescimento da economia não será obstado por gargalos infra-estruturais torna urgente cimentar a confiança no futuro, condição "sine qua non" para o alongamento voluntário dos prazos de maturação dos ativos financeiros. Dada a dificuldade de aprovação rápida das PPPs (Parcerias Público-Privadas), e considerando as suas limitações, um esforço concentrado deveria viabilizar operações estruturadas de "project finance" dentro do atual marco legal, para deslanchar grandes projetos de investimento em infra-estruturas logísticas e de energia.
A veloz implantação dessas reformas junto com o alongamento da "duration" dos instrumentos de poupança tornará possível a expansão do crédito bancário ao setor privado. Para tanto o Banco Central e o governo precisarão, "pari passu", reduzir os depósitos compulsórios e suavizar a carga tributária sobre a intermediação financeira. O objetivo síntese é ofertar crédito em escala suficiente e com taxas reais de juros mais baixas e compatíveis com as taxas de retorno das atividades produtivas. Essa é a agenda relevante, jamais enfrentada, que soma os interesses do setor produtivo e do setor bancário em prol do anseio nacional de retomada firme do desenvolvimento.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


Texto Anterior: Opinião econômica - Rubens Ricupero: Mais forte do que a morte
Próximo Texto: Luís Nassif: Os críticos da MPB
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.