São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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LUÍS NASSIF

Os críticos da MPB

Cheguei a São Paulo em 1970, já fissurado em música brasileira. Do interior, ouvíamos os sons, curtíamos as histórias, mas não dispúnhamos das informações. São Paulo era a metrópole complexa, enorme, mas não tínhamos o mapa dos guetos musicais, os segredos da noite, o endereço dos músicos.
Quando arrumei meu primeiro estágio, na "Veja", abriu-se um mundo que jamais imaginara antes. Fui emprestado à editoria de Artes e Espetáculos, que englobava comportamento, música e artes em geral. A editoria contava com um quarteto de peso: Tárik de Souza, crítico de música, José Ramos Tinhorão, que fazia uma primorosa seção "Gente", Léo Gilson Ribeiro, crítico de literatura, e Geraldo Mayrink, de cinema, melhor texto da revista, ao lado de Tão Gomes Pinto e de Elio Gaspari.
Até então, a crítica de música era basicamente intelectualizada, cult ou meramente impressionista. Ainda naquele ano de 1970, já morando em São Paulo, participei de um festival de música em Poços de Caldas, que teve no júri Paulo Cotrim, crítico oficial da "Veja". Dono do João Sebastião Bar, "point" da MPB da época, Cotrim teve papel relevante na disseminação da música concreta, de Gilberto Mendes a Damiano Cozella, dos tropicalistas a outros movimentos inovadores. Ao lado de José Lino Grunewald e de Augusto de Campos, integravam uma espécie de crítica eruditizada da música popular.
Quando consegui meu estágio, alguns meses depois do festival, Cotrim já tinha saído da "Veja", e, para seu lugar, fora promovido Tárik, que, com Tinhorão, teve papel relevante como consultor dos fascículos da Abril, de Música Popular Brasileira, série que revolucionou o conhecimento sobre o tema na época.
Havia outros críticos de peso na época, como Maurício Kubrusly, no "Jornal da Tarde", e Arley Pereira, no "Diário Popular". Mas o padrão de crítica dos anos seguintes foi definido pelo trabalho de Tárik e de Tinhorão.
Tinhorão já era o pesquisador minucioso, o rato de sebo, o obcecado pela pesquisa. Tárik, o crítico contemporâneo, que dessacralizava e despolitizava a música, eliminando a falsa compartimentalização entre a música de "bom gosto" e a de "mau gosto". Foi cumprindo uma pauta sua que percorri o inesquecível Las Vegas, no cais de Santos, passando pela Paraguaia, em Viracopos, e terminando na Jovita, em Poços, para uma reportagem sobre "música de zona". Foi convivendo com ele que aprendi que o papel do crítico não era definir padrões de gosto, mas entender e explicar as características que levam uma música a encantar seu tipo de público. Há que saber ouvir a música "brega" como um "brega", a música de morro como um sambista, o jazz como um jazzman.
Tárik era quase despido de preconceito. Coube a ele, entre outros feitos, identificar a influência do choro na música de Tom Jobim, especialmente em "Chega de Saudade", e erigir Jorge Ben em figura maior da música brasileira. Recentemente, lançou um livro, um baú precioso no qual colocou muitos dos tesouros que levantou ao longo de sua carreira. Só um livro para permitir a visão geral sobre a importância de sua obra.
Tinhorão já era aquele ranheta maravilhoso, capaz das mais ardidas verrinas contra a bossa nova e das mais profundas pesquisas sobre as raízes da música brasileira. Além disso, era personagem das crônicas de Nelson Rodrigues, o mais brilhante e reacionário cronista daqueles anos.
Quantas vezes nós, os focas, aceitávamos seu convite para almoçar no Jangada? Sobrava para nós não só a conta como a obrigação de passar em sua pequena lotérica, na Lapa, e dar uma hora de plantão perfurando cartões de loteria esportiva. Tinhorão nos pagava regiamente, compartilhando seu conhecimento musical conosco.
Foi por meio deles que conheci Cartola e Nelson Cavaquinho, que me encantei com Ismael e Candeias, que descobri que o maior cantor brasileiro foi Orlando Silva, que aprendi sobre Pixinguinha e Jacob, sobre Caetano e Chico, Radamés e Gaó.
A música brasileira muito deve aos dois.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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