São Paulo, segunda, 5 de outubro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Resgate

JOÃO SAYAD

O coração ainda está batendo forte, as mãos, tremendo, muita sede e vontade de comer açúcar.
Que susto! Será que passou?
Quando ninguém aguentava mais, ouvimos a sirene -uóóó!- e os sinos -blém, blém, blém!- do caminhão vermelho da equipe de resgate, com lâmpadas giratórias amarelas, vermelhas e azuis.
O FMI e o Banco Mundial ouviram os gritos e vieram correndo, desobedecendo a sinais vermelhos e pedindo passagem no trânsito congestionado: trouxeram US$ 25 bilhões! Tudo o que saiu voltava no caminhão de resgate.
Agora, mãos habilidosas nos colocam na maca, branca e limpa, e somos levados rapidamente para o hospital. Estamos a salvo entre médicos, enfermeiras, aparelhos de exame, medicamentos e muito carinho.
Com US$ 25 bilhões, não precisamos desvalorizar nem deixar de honrar os pagamentos no exterior. Não causamos problemas para a América Latina.
Passado o pânico, primeiros curativos, mercurocromo nos joelhos esfolados, atadura na testa, sedativo para dores e a primeira noite bem-dormida.
No dia seguinte, a pergunta -como sair da embrulhada?
Qual o problema? Faltam dólares para pagar os dólares que tomamos emprestados.
Única solução -produzir mais dólares do que gastamos. Exportar mais do que importamos. Receber mais turistas do que gastamos lá fora. É preciso sobrar US$ 35 bilhões por ano.
Como fazer?
Reformar a Constituição.
O primeiro artigo pode ficar como está: todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.
O segundo artigo terá a seguinte redação: é proibido gastar mais dólares do que produzimos.
Se for necessário o apoio da opinião pública e dos conservadores, podemos introduzir um terceiro: o governo não pode gastar mais reais do que arrecada. Começamos a guardar reais. Não são os dólares de que precisamos, mas, em último caso, teremos reais para pagar dólares. Será que estrangeiros aceitam?
Por equidade, aprofundamos a reforma: ninguém pode gastar mais do que ganha.
Assim terminamos com essa discussão interminável de macroeconomia. Se cada um obedecer, o total tem que dar certo, e o país passa a ser o primeiro a ter problemas macroeconômicos resolvidos pela Constituição.
Se não funcionar, faremos mais. Introduzimos um quarto artigo na Constituição: o salário do trabalhador brasileiro tem que cair até que as exportações aumentem, mesmo com a taxa de câmbio fixa.
Se não funcionar, vamos esperar que o desemprego, a recessão e outras formas de sofrimento consigam convencer trabalhadores, estradas, policiais, ladrões, juízes, trens, ônibus, hotéis, telefones e o Mc Donald's de que todos estão muito caros. Que, se eles não baixarem os preços, não conseguiremos atender ao segundo artigo da Constituição -exportar mais do que importar.
Se depois de muito tempo e muito desemprego não funcionar, só teremos uma solução: desvalorizar o câmbio.


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net




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