São Paulo, quarta-feira, 05 de dezembro de 2001

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ANÁLISE

Funcionários, forçados a investir em ações da empresa, perdem com colapso

PAUL KRUGMAN
COLUNISTA DO "THE NEW YORK TIMES"

Quando uma empresa aparentemente lucrativa quebra de repente, há lições a aprender. Quando é a mais admirada dos EUA, elogiada pelos teóricos dos negócios como a corporação mais representativa do século 21, pode-se pensar se ela seria a ponta do iceberg. E quantos teríamos, sem saber, passagens no Titanic?
Levará um tempo, e muitos processos judiciais serão necessários antes que toda a história do colapso da Enron seja revelada. Mas uma coisa já é clara: o caso demonstra até que ponto os executivos são eficientes na transferência de riscos para longe de si e em direção aos funcionários. Os líderes da Enron saíram do desastre abalados, mas ricos. Muitos dos empregados -entre os quais alguns dos leais trabalhadores que me enviavam cartas furiosas quando eu criticava a Enron- perderam as economias de suas vidas.
Por trás desse desastre para os trabalhadores temos uma mudança radical, mas não muito divulgada, do sistema norte-americano de aposentadorias. Vinte anos atrás, a maior parte dos funcionários tinha planos de pensão com "benefícios definidos", ou seja, seus empregadores lhes prometiam uma aposentadoria fixa. Hoje, a maior parte tem planos de "contribuição definida", ou seja, investem nas aposentadorias e aceitam o risco. As contribuições costumam ser subsidiadas pelo empregador e têm tratamento tributário especial, mas isso não adianta muito se, como no caso da Enron, os ativos perderem a maior parte de seu valor.
É fácil defender um argumento teórico em favor da contribuição definida. Ela aumenta as opções dos trabalhadores, que podem escolher quanto poupar e de que maneira investir. E mais opções quase sempre são uma boa idéia.
Mas o destino da Enron mostra a diferença entre teoria e prática. Como escreveu Gretchen Morgenson, do "New York Times", os trabalhadores do país foram coagidos ou seduzidos a investir muito da poupança em ações das empresas onde trabalham. A natureza exploratória desse incesto foi enfatizada pelo "ferrolho" da Enron, sob o qual, por coincidência, segundo os executivos da empresa, novas regras forçavam os funcionários investir na empresa, no exato momento em que ela iniciava a espiral que a levou à morte. Grande liberdade de escolha.
E mesmo quando os trabalhadores tinham escolhas reais, fica-se a imaginar se eles compreendiam o risco. O abandono do sistema de aposentadoria coincidiu com uma enorme alta nas Bolsas; muitos trabalhadores que jamais viram ações em queda desde que se tornaram investidores subestimaram o risco de perdas.
Espera-se que as quebras não virem ocorrência cotidiana. Mas é provável que milhões de trabalhadores tenham experiências semelhantes às da Enron, descobrindo que enormes porções de suas poupanças desapareceram. Serão dependentes do único programa de benefícios definidos de grande porte que resta: o Seguro Social. Se ele continuar existindo.
A comissão de reforma do Seguro Social criada pelo governo Bush lançou um relatório na semana passada, no momento em que a Enron iniciava seus estertores. A maior parte das críticas à comissão, entre elas as minhas, se concentravam em, claro, práticas de contabilidade parecidas com as da Enron: itens pareciam ser incluídos e excluídos nos balanços segundo as conveniências da comissão. Assim, quando o sistema de Seguro Social recebe mais dinheiro do que gasta, isso não tem importância: o Orçamento é unificado, de modo que não quer dizer nada quando uma parte tem superávit. Mas em 2016, quando o Seguro Social começar a pagar mais do que arrecada, haverá uma crise, porque então ele terá de se virar por conta própria.
Mas a comissão recorre a truques baratos de contabilidade para defender a tese que é seu objetivo: transformar o Seguro Social de um sistema definido por benefícios, que garante a aposentados uma renda básica, em sistema definido por contribuições, sob o qual os não-sensatos ou os azarados teriam uma velhice pobre.
Alguns analistas acreditam que o Seguro Social será convertido em sistema de contribuições definidas. Não que seja boa idéia, mas o setor financeiro -que tem grande poder em um sistema político movido por dinheiro- ganha com a conversão. Espero que estejam errados. Senão, o destino dos funcionários da Enron, vítimas da diretoria, que acreditavam estar a seu lado, pode mesmo representar a imagem do porvir.


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton

Tradução de Paulo Migliacci


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