São Paulo, terça, 6 de janeiro de 1998.




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LUÍS NASSIF
O incrível senhor Olsen

Não sei como é Robert Olsen, ex-vice-cônsul de um consulado americano no Rio de Janeiro. Tenho idéia vaga, aliás, do que venha a ser um vice-cônsul. Imagino o tipo meticuloso, que trabalha numa escrivaninha cheia de carimbos, com escaninhos lotados de papéis irrepreensivelmente organizados.
Se não fosse voar demais, ousaria imaginar o senhor Olsen com pincenê, ou óculos apoiados na testa, uma Bic pendurada na orelha, um elástico segurando a manga da camisa, tal qual um personagem de Mark Twain.
Para cumprir carreira e chegar a vice-cônsul, o senhor Olsen deve ser do tipo sistemático, previsível, incapaz de grandes apostas ou de grandes riscos. Como vice-cônsul, o senhor Olsen deve ter horror a riscos. Sua única extravagância, aliás, foi tornar-se ex-vice-cônsul. Trata-se de carreira tão previsível e burocratizada que vice-cônsul torna-se cônsul e, depois, se não vierem mais promoções, cônsul aposentado. Mas quase nunca ex-vice-cônsul.
No entanto, o senhor Olsen virou ex por conta de solidariedade humana. Mais que isso: solidariedade a um grupo de mulatinhos e negros de um país tropical, onde provavelmente ele tinha amarrado seu burro apenas por exigências burocráticas de seu cargo.
Durante vários meses, brasileiros foram vítimas de racismo. Não do racismo disfarçado de brasileiros contra brasileiros, mas de um racismo mais abjeto, posto que de um Estado estrangeiro, atuando em pleno território nacional.
Crianças em viagens de férias, técnicos em viagens de estudos, trabalhadores à procura de trabalho, ninguém foi poupado pelos consulados americanos incumbidos de conceder o visto de entrada nos Estados Unidos. Bastava apenas que não fossem brancos ou não tivessem aparência "apresentável", seja lá isso o que fosse, para ter o visto negado.
Fora poucas reportagens indignadas da mídia -com pais de uma criança negra discriminada em uma viagem à Disneyworld-, nenhuma reação maior se ouviu, e nenhuma ação mais sistemática foi empreendida contra a discriminação. Aceitou-se como verdade que a criança negra não fora discriminada, mas apenas vítima de trapalhadas burocráticas.
É nesse contexto que surge o anti-herói, senhor Olsen. Sem invocar Zumbi, sem politizar, sem pretender transformar-se em herói da contracultura, ele resolve enfrentar uma das mais poderosas instituições americanas, o Departamento de Estado, e recusa-se a continuar na missão desprezível de discriminar pessoas pela cor. Depois, entra com uma ação contra o departamento, na qual tornou-se vitorioso na semana passada.
Imagino que, na qualidade de vice-cônsul, no seu último dia de trabalho o senhor Olsen chegou mais cedo, abriu sua escrivaninha, despachou até o último processo, para não deixar trabalho pendente. Depois, guardou os carimbos nos respectivos lugares, preparou uma cartinha burocrática com dizeres simples, próprio dos anti-heróis, pegou sua pastinha e foi para a casa. Assim, sem nenhum appeal.
Desde já, o senhor Olsen é meu candidato oficial a tema de escola de samba para o Carnaval de 99. E que o samba-enredo tenha por título "ode ao gringo amigo".

E-mail: lnassif@uol.com.br



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