São Paulo, Sábado, 06 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Uma luz na escuridão

RUBENS RICUPERO

Hannah Arendt termina assim o prefácio de "Men in Dark Times": "Mesmo nos tempos mais escuros temos o direito de esperar alguma iluminação (... que ...) nos pode vir não tanto de teorias e conceitos como da incerta, bruxuleante, frequentemente débil luz que alguns homens e mulheres acenderão em suas vidas e obras, quase em qualquer circunstância, e irradiarão durante todo o tempo que lhe foi dado sobre a terra (...)".
Nesse lusco-fusco brasileiro, menos de Carnaval que de Cinzas, a perda da esperança, a amargura se disfarçando às vezes em humor -deboche, é preciso, mais que nunca, levantar bem alto, para que todos vejam, a luz que emana de alguns de nossos contemporâneos. E, desse ponto de vista, o Brasil até que tem sido bem servido confirmando que, onde abundou o mal, superabundou a graça.
Desses seres luminosos, alguns nos deixaram não faz muito: Alceu Amoroso Lima, Sobral Pinto, Betinho. Outros continuam felizmente a nos clarear o caminho com a luz da inteligência e a força do coração: Antonio Cândido, Celso Furtado, Barbosa Lima e, na evocação de hoje, o querido dom Hélder. O que os une não é apenas a integridade intelectual, a coerência entre pensamento e ação, o irreversível compromisso com o povo. É, acima de tudo, a pureza de vida, o desapego em relação ao poder e ao dinheiro, a indiferença diante de modas e vanglória. Quase nunca disputaram eleições ou exerceram o governo ou, se o fizeram, foi para servir, jamais para dominar e oprimir. Outros, igualmente inteligentes, se deixaram transportar pelos ventos dominantes ou pela última ilusão importada dos centros mundiais do poder. Eles, ao contrário, não perderam a fé na viabilidade de um projeto brasileiro autônomo e em favor das maiorias. Por isso, nestes tempos inconstantes, eles servem de referência aos que vacilam e de razão de esperança aos que perdem coragem.
Dom Hélder, miúdo, franzino como Betinho, filho da mesma terra onde nasceu o padre Cícero, atravessa praticamente o arco completo do século 20 brasileiro. O que em primeiro lugar o define é ser ele um cristão, substantivo desacompanhado de atributo. No sentido da história narrada por Hannah Arendt. Roma, junho de 1963, João 23 agoniza no Vaticano. A camareira do hotel pergunta à escritora: "Senhora, esse papa era um verdadeiro cristão; como foi possível então que ele conseguisse sentar na cátedra de São Pedro? Ele não tinha primeiro que ser nomeado bispo, arcebispo, cardeal? Será que "eles" não perceberam o que ele era?". No caso de dom Hélder, "eles" se deram conta em tempo: foi arcebispo, mas não chegou a cardeal...
Peter Hebblethwaite, o biógrafo de grandes pontífices deste século, disse que João 23 foi o primeiro papa "cristão" e Paulo 6º, o primeiro papa moderno. Dom Hélder foi, ao mesmo tempo, moderno e cristão. Ele é realmente o primeiro grande prelado brasileiro a romper o molde tradicional de alto funcionário eclesiástico, de pilar da ordem estabelecida. Sua cultura leiga ou religiosa é contemporânea, nutrida nos autores franceses das décadas de 30 e 40, como a de Paulo 6º. Será pioneiro em compreender o valor dos meios de comunicação de massa. Sua ação pastoral vai atingir milhões porque recorre a instrumentos atualizados. Muito antes que João Paulo 2º, será o mestre incomparável das gigantescas manifestações de massa, como as no Aterro do Rio, durante o Congresso Eucarístico e, porque não dizer, com gosto e estilo muito superiores aos atuais. Seu talento organizativo e de ação se expressa quando funda a Cruzada São Sebastião, primeira tentativa sistemática de resolver o problema das favelas, da marginalização.
Décadas antes do aparecimento do movimento do microcrédito, ele já havia lançado a iniciativa pioneira do Banco da Providência. Como bispo-auxiliar do Rio de Janeiro, dom Hélder sai da sacristia e vai ao encontro dos problemas do povo, suprindo às vezes a omissão de um Estado indiferente.
Mas não se trata apenas de casca moderna e miolo carcomido. Sua pregação decorre da compreensão clara dos mecanismos mundiais de dominação econômica e política e dos vínculos que os articulam às estruturas que condenam as maiorias brasileiras a uma existência infra-humana. Não se fecha em sua igreja. Como João 23 dizendo "todos, batizados ou não, pertencem por direito a Jesus Cristo", dom Hélder vai declarar na posse em 1964 como arcebispo de Olinda e Recife: "Ninguém se escandalize quando me vir frequentando criaturas tidas como indignas e pecadoras. Quem não é pecador? (...) Ninguém se espante me vendo com criaturas tidas como envolventes e perigosas, da esquerda ou da direita, da situação ou da oposição, anti-reformistas ou reformistas, anti-revolucionárias ou revolucionárias (...) Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a todos, absolutamente a todos. Cristo morreu para todos os homens: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno".
Com esses princípios, desempenhou papel decisivo na transformação de uma igreja como a brasileira, mais que reacionária, medíocre e amorfa, em poderoso instrumento de mudança social. Quer no apogeu dos seus anos criativos, durante a era dourada de JK, quer no combate duro contra a ditadura, a violação dos direitos, a tortura e o assassinato de padres e leigos no Recife, dom Hélder foi o sal que salga, a faísca que ajuda a atear o fogo. Sua influência foi central na CNBB, a conferência dos bispos, da qual foi secretário-geral de 1952 a 1964, no Conselho Episcopal Latino-Americano, na "opção preferencial pelos pobres" proclamada em Medellín.
Apesar dos ódios tenazes que despertou, o semeador semeou a boa semente e ela frutificou. Como se vê no documento "Ecclesia in America", que João Paulo 2º acaba de publicar. Nele se estigmatiza, como nunca antes, o neoliberalismo que converte o lucro e as leis do mercado em "parâmetros absolutos em detrimento da dignidade e do respeito da pessoa e do povo". Recusa-se toda e qualquer "justificação ideológica de um sistema no qual os pobres são cada vez mais numerosos, vítimas de políticas e estruturas injustas". Após condenar a "cultura da morte", o Papa se refere à América como o "que poderia ser o continente da esperança, se as comunidades humanas que o compõem, assim como suas classes dirigentes, tivessem uma base ética comum".
Hoje se reúne em Brasília a reestruturada Comissão Brasileira de Justiça e Paz, cuja existência tem também tanto a ver com dom Hélder. Não poderei infelizmente estar com meus companheiros da Comissão porque, no mesmo dia, participo de reunião sobre o comércio mundial na Jamaica. Não posso deixar de pensar, porém, que é um bom augúrio relançar a Comissão na véspera dos 90 anos de dom Hélder. É como se a data estabelecesse a transmissão da corrente, o elo de continuidade entre ele, que tanto fez pela justiça e pelo amor em tempos muito mais perigosos, e nós, que tentaremos dar prosseguimento a obra que nunca termina. Sabendo que ela precisa de nós, mas, ao mesmo tempo, que só uma força maior que a nossa pode garantir o sucesso.
Decidiu ser sacerdote apesar dos temores do pai, que dizia: "Meu filho, você sabe o que é ser padre? Padre e egoísmo nunca podem andar juntos. O padre tem que se gastar, se deixar devorar". Ao ser sagrado bispo, escolheu como lema "In Manus tuas". São as palavras do Salmo que Jesus mesmo escolheu dizer na hora da morte: "Em Tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito". Lembro o soneto da velhice de Guerra Junqueiro: "Na mão de Deus, na sua mão direita, descansou afinal meu coração". Ainda não chegou a hora de descansar. Mas, trabalho ou descanso, renascimento da Comissão ou o fim que nos espera a todos, qualquer tempo é propício. Ao nos inclinarmos com respeito e alegria diante dos 90 anos bem vividos de dom Hélder, podemos repetir as últimas palavras de João 23: "Todo dia é bom para nascer, todo dia é bom para morrer".


Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos sábados nesta coluna.


Texto Anterior: Balança tem déficit de US$ 754 milhões
Próximo Texto: Brasil piora, diz imprensa britânica
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.