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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma luz na escuridão
RUBENS RICUPERO
Hannah Arendt termina assim
o prefácio de "Men in Dark Times": "Mesmo nos tempos mais
escuros temos o direito de esperar
alguma iluminação (... que ...)
nos pode vir não tanto de teorias
e conceitos como da incerta, bruxuleante, frequentemente débil
luz que alguns homens e mulheres acenderão em suas vidas e
obras, quase em qualquer circunstância, e irradiarão durante
todo o tempo que lhe foi dado sobre a terra (...)".
Nesse lusco-fusco brasileiro,
menos de Carnaval que de Cinzas, a perda da esperança, a
amargura se disfarçando às vezes
em humor -deboche, é preciso,
mais que nunca, levantar bem alto, para que todos vejam, a luz
que emana de alguns de nossos
contemporâneos. E, desse ponto
de vista, o Brasil até que tem sido
bem servido confirmando que,
onde abundou o mal, superabundou a graça.
Desses seres luminosos, alguns
nos deixaram não faz muito: Alceu Amoroso Lima, Sobral Pinto,
Betinho. Outros continuam felizmente a nos clarear o caminho
com a luz da inteligência e a força
do coração: Antonio Cândido,
Celso Furtado, Barbosa Lima e,
na evocação de hoje, o querido
dom Hélder. O que os une não é
apenas a integridade intelectual,
a coerência entre pensamento e
ação, o irreversível compromisso
com o povo. É, acima de tudo, a
pureza de vida, o desapego em relação ao poder e ao dinheiro, a
indiferença diante de modas e
vanglória. Quase nunca disputaram eleições ou exerceram o governo ou, se o fizeram, foi para
servir, jamais para dominar e
oprimir. Outros, igualmente inteligentes, se deixaram transportar
pelos ventos dominantes ou pela
última ilusão importada dos centros mundiais do poder. Eles, ao
contrário, não perderam a fé na
viabilidade de um projeto brasileiro autônomo e em favor das
maiorias. Por isso, nestes tempos
inconstantes, eles servem de referência aos que vacilam e de razão
de esperança aos que perdem coragem.
Dom Hélder, miúdo, franzino
como Betinho, filho da mesma
terra onde nasceu o padre Cícero,
atravessa praticamente o arco
completo do século 20 brasileiro.
O que em primeiro lugar o define
é ser ele um cristão, substantivo
desacompanhado de atributo. No
sentido da história narrada por
Hannah Arendt. Roma, junho de
1963, João 23 agoniza no Vaticano. A camareira do hotel pergunta à escritora: "Senhora, esse papa era um verdadeiro cristão; como foi possível então que ele conseguisse sentar na cátedra de São
Pedro? Ele não tinha primeiro
que ser nomeado bispo, arcebispo, cardeal? Será que "eles" não
perceberam o que ele era?". No
caso de dom Hélder, "eles" se deram conta em tempo: foi arcebispo, mas não chegou a cardeal...
Peter Hebblethwaite, o biógrafo
de grandes pontífices deste século,
disse que João 23 foi o primeiro
papa "cristão" e Paulo 6º, o primeiro papa moderno. Dom Hélder foi, ao mesmo tempo, moderno e cristão. Ele é realmente o primeiro grande prelado brasileiro a
romper o molde tradicional de alto funcionário eclesiástico, de pilar da ordem estabelecida. Sua
cultura leiga ou religiosa é contemporânea, nutrida nos autores
franceses das décadas de 30 e 40,
como a de Paulo 6º. Será pioneiro
em compreender o valor dos
meios de comunicação de massa.
Sua ação pastoral vai atingir milhões porque recorre a instrumentos atualizados. Muito antes que
João Paulo 2º, será o mestre incomparável das gigantescas manifestações de massa, como as no
Aterro do Rio, durante o Congresso Eucarístico e, porque não dizer, com gosto e estilo muito superiores aos atuais. Seu talento organizativo e de ação se expressa
quando funda a Cruzada São Sebastião, primeira tentativa sistemática de resolver o problema
das favelas, da marginalização.
Décadas antes do aparecimento
do movimento do microcrédito,
ele já havia lançado a iniciativa
pioneira do Banco da Providência. Como bispo-auxiliar do Rio
de Janeiro, dom Hélder sai da sacristia e vai ao encontro dos problemas do povo, suprindo às vezes a omissão de um Estado indiferente.
Mas não se trata apenas de casca moderna e miolo carcomido.
Sua pregação decorre da compreensão clara dos mecanismos
mundiais de dominação econômica e política e dos vínculos que
os articulam às estruturas que
condenam as maiorias brasileiras
a uma existência infra-humana.
Não se fecha em sua igreja. Como
João 23 dizendo "todos, batizados
ou não, pertencem por direito a
Jesus Cristo", dom Hélder vai declarar na posse em 1964 como arcebispo de Olinda e Recife: "Ninguém se escandalize quando me
vir frequentando criaturas tidas
como indignas e pecadoras.
Quem não é pecador? (...) Ninguém se espante me vendo com
criaturas tidas como envolventes
e perigosas, da esquerda ou da direita, da situação ou da oposição,
anti-reformistas ou reformistas,
anti-revolucionárias ou revolucionárias (...) Ninguém pretenda
prender-me a um grupo, ligar-me
a um partido, tendo como amigos
os seus amigos e querendo que eu
adote suas inimizades. Minha
porta e meu coração estarão
abertos a todos, absolutamente a
todos. Cristo morreu para todos
os homens: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno".
Com esses princípios, desempenhou papel decisivo na transformação de uma igreja como a brasileira, mais que reacionária, medíocre e amorfa, em poderoso instrumento de mudança social.
Quer no apogeu dos seus anos
criativos, durante a era dourada
de JK, quer no combate duro contra a ditadura, a violação dos direitos, a tortura e o assassinato de
padres e leigos no Recife, dom
Hélder foi o sal que salga, a faísca
que ajuda a atear o fogo. Sua influência foi central na CNBB, a
conferência dos bispos, da qual
foi secretário-geral de 1952 a
1964, no Conselho Episcopal Latino-Americano, na "opção preferencial pelos pobres" proclamada
em Medellín.
Apesar dos ódios tenazes que
despertou, o semeador semeou a
boa semente e ela frutificou. Como se vê no documento "Ecclesia
in America", que João Paulo 2º
acaba de publicar. Nele se estigmatiza, como nunca antes, o neoliberalismo que converte o lucro e
as leis do mercado em "parâmetros absolutos em detrimento da
dignidade e do respeito da pessoa
e do povo". Recusa-se toda e qualquer "justificação ideológica de
um sistema no qual os pobres são
cada vez mais numerosos, vítimas de políticas e estruturas injustas". Após condenar a "cultura
da morte", o Papa se refere à
América como o "que poderia ser
o continente da esperança, se as
comunidades humanas que o
compõem, assim como suas classes dirigentes, tivessem uma base
ética comum".
Hoje se reúne em Brasília a
reestruturada Comissão Brasileira de Justiça e Paz, cuja existência
tem também tanto a ver com dom
Hélder. Não poderei infelizmente
estar com meus companheiros da
Comissão porque, no mesmo dia,
participo de reunião sobre o comércio mundial na Jamaica. Não
posso deixar de pensar, porém,
que é um bom augúrio relançar a
Comissão na véspera dos 90 anos
de dom Hélder. É como se a data
estabelecesse a transmissão da
corrente, o elo de continuidade
entre ele, que tanto fez pela justiça e pelo amor em tempos muito
mais perigosos, e nós, que tentaremos dar prosseguimento a obra
que nunca termina. Sabendo que
ela precisa de nós, mas, ao mesmo
tempo, que só uma força maior
que a nossa pode garantir o sucesso.
Decidiu ser sacerdote apesar
dos temores do pai, que dizia:
"Meu filho, você sabe o que é ser
padre? Padre e egoísmo nunca
podem andar juntos. O padre tem
que se gastar, se deixar devorar".
Ao ser sagrado bispo, escolheu como lema "In Manus tuas". São as
palavras do Salmo que Jesus mesmo escolheu dizer na hora da
morte: "Em Tuas mãos, Senhor,
entrego o meu espírito". Lembro o
soneto da velhice de Guerra Junqueiro: "Na mão de Deus, na sua
mão direita, descansou afinal
meu coração". Ainda não chegou
a hora de descansar. Mas, trabalho ou descanso, renascimento da
Comissão ou o fim que nos espera
a todos, qualquer tempo é propício. Ao nos inclinarmos com respeito e alegria diante dos 90 anos
bem vividos de dom Hélder, podemos repetir as últimas palavras
de João 23: "Todo dia é bom para
nascer, todo dia é bom para morrer".
Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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