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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A grande ilusão

RUBENS RICUPERO

Nada nem ninguém jamais conseguiu afastar os governos da barbárie da guerra. No início do século 20, sir Norman Angell tentou provar, no livro que dá nome a este artigo, que eram ilusórios e fruto de um defeito de raciocínio os supostos benefícios das guerras. Com muito menos ingenuidade e a poderosa força persuasiva da poesia e da imagem, Jean Renoir utilizou o mesmo título no filme definitivo sobre a futilidade da guerra.
Não obstante o impacto de um e de outro, a Primeira Guerra Mundial começou quatro anos após o livro e a Segunda mal esperou dois anos do lançamento do filme para fazer sua catastrófica estréia. Melhor talvez que o pacifista e o cineasta, o poeta austríaco Erich Fried, prematuramente desaparecido, compreendia onde estava o perigo ao escrever "Na colocação certa": "Os assassinos estão no meio de nós? // Mesmo isso já seria perigoso // Mas ao contrário // Os assassinos estão acima de nós" (do livro "Lebensschatten", 1981, trad. Celeste A. Galeão).
A ilusão a que se referia Angell era a guerra, mas muita gente passou depois a associar a palavra à Sociedade ou Liga das Nações, nascida da reação pacifista à carnificina de 1914-1918. Está hoje na moda comparar o destino inglório da Liga ao que ameaçaria a ONU neste momento. Como quase toda comparação histórica, esta também peca por exagero e inadequação, ao passar em silêncio as seguintes diferenças fundamentais entre as duas instituições:
1ª) os EUA fundaram a Liga, mas nunca entraram, golpe inicial que se revelou irreversível;
2ª) em consequência, a Sociedade das Nações jamais deixou de ser um clube europeu, dominado pelo Reino Unido e a França;
3ª) sua pretensão à universalidade era oca, pois quase todos os povos da África, Ásia e do Caribe, sob regime colonial, estavam ausentes e o país mais importante da América Latina, o Brasil, deixou a Sociedade cedo, em 1926, em protesto por não ter sido feito membro permanente do Conselho, com a Alemanha de Weimar;
4ª) mesmo antes da crise final da invasão da Abissínia pela Itália fascista e da ineficácia das sanções (1935-1936), a Liga já tinha sido abandonada pelas principais potências agressivas, o Japão, após invadir a Manchúria (março de 1933), e a Alemanha nazista, meses depois.
Dito isso, não há como negar que a invasão do Iraque constitui a crise mais grave enfrentada pela ONU em mais de meio século, pois atinge a razão de ser do sistema, o princípio de que a segurança internacional deve ser assegurada de modo coletivo, e não individual. Houve, é certo, episódios anteriores de uso unilateral da força, como o do ataque anglo-francês a Suez, a anexação de Goa e a invasão do futuro Bangladesh pela Índia, que não tiveram, contudo, nem de longe, a amplitude e a seriedade do atual. Mesmo o precedente mais recente, o de Kosovo, foi atenuado por duas circunstâncias relevantes:
1ª) não fazer nada teria tido a consequência moral e legal muito mais funesta de permitir o genocídio ou expulsão dos albaneses;
2ª) a ameaça de veto russo se fez contra a maioria esmagadora do Conselho, como se viu quando este derrotou por 12 votos a proposta da Rússia de declarar ilegal a ação da Otan. Aliás, logo depois, ao aprovar a administração de Kosovo sob a égide da ONU, o Conselho, conforme escreveu o professor Thomas M. Franck, ex-presidente da Sociedade Americana de Direito Internacional, de certa forma legalizou retroativamente o recurso à força, buscando minimizar o efeito negativo para a Carta da ação militar ilícita.
No presente caso, os dirigentes que assumiram perante a história a gravíssima responsabilidade de agir sem a aprovação do Conselho sabiam perfeitamente que essa aprovação é a fonte mais alta de legitimidade e legalidade internacionais. O fato é que, enquanto a maioria no Conselho parecia atingível, ela foi tentada por todos os meios pelo presidente, primeiros-ministros e chanceleres da coligação. Como disse Robin Cook ao renunciar à liderança na House of Commons: "A própria intensidade daquelas tentativas acentua quão importante era ter sucesso (na votação). Agora que esses intentos falharam, não podemos pretender que obter uma segunda resolução não tivesse nenhuma importância".
Teve, assim, razão o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, quando advertiu que, "se certos membros do Conselho resolvessem agir sem o seu aval, a legitimidade dessa ação seria amplamente contestada e não obteria o apoio político para assegurar-lhe o êxito a longo prazo". Dias depois desse artigo em vários jornais do mundo, o secretário-geral reafirmava em Haia que uma ação militar fora do quadro do Conselho "não estaria em conformidade com a Carta". Não é preciso dizer que as previsões de Kofi Annan se confirmam a cada dia que passa.
Diante do fato consumado, há quem diga que a ONU e o seu Conselho de Segurança tenham perdido credibilidade. Quem pensa assim confunde credibilidade com efetividade. Ser crível é merecer fé, confiança, valor moral que se adquire pela adesão à verdade, a obediência a princípios. Nesse sentido, a ONU e o Conselho ganharam mais credibilidade, ao resistir às pressões dos poderosos, e a teriam perdido se tivessem votado apenas para carimbar uma decisão de força. Efetividade é diferente, é do domínio dos meios, ter a capacidade, os recursos para produzir efeito, coisa que a ONU não tem nem nunca teve pois os fortes e poderosos jamais quiseram emprestar-lhe uma parcela do seu poder.
O teste definitivo da ONU virá no momento de decidir, após a inevitável derrota do Iraque, se o Conselho deve ou não aprovar sua participação na reconstrução do governo transitório, das instituições e estruturas destruídas do país. A posição do Secretariado da organização é que "ela não deve, em nenhum caso, aceitar papel subordinado sob uma potência ocupante", devendo guiar-se pelos seguintes princípios: "Respeito da soberania e integridade territorial do Iraque; respeito pelo direito do povo iraquiano de livremente determinar seu futuro político e controlar seus recursos naturais; necessidade de ajudar esse povo a estabelecer as condições de uma vida normal e de pôr fim a seu isolamento internacional". Termino com a autoridade da palavra do prof. Franck: "A resposta da ONU a seu segundo teste nessa crise (...) determinará a capacidade do sistema de salvaguardar sua credibilidade no futuro".


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).



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