UOL


São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A esperança com pés no chão

ALOIZIO MERCADANTE

O governo Lula assumiu a administração do país em meio a uma crise grave e complexa, com fortes desequilíbrios tanto no cenário internacional -a retração da economia mundial e dos fluxos de investimentos externos, a instabilidade dos mercados financeiros e as incertezas da guerra EUA-Iraque- como no plano interno, no qual as tensões e os desequilíbrios acumulados em diversas frentes ao longo dos oito anos precedentes deixaram uma herança extraordinariamente pesada: uma economia em situação de extrema vulnerabilidade externa e semiparalisada, um Estado debilitado pelo crescimento da dívida pública e um nível de desemprego aberto crescente. Agregue-se a isso o desmonte da capacidade operacional do Estado, os desequilíbrios patrimoniais associados à privatização, dos quais o episódio da AES é só um exemplo, o desmantelamento de segmentos estratégicos da indústria pesada -como o de construção naval-, e o estrangulamento financeiro de alguns setores com custos ou financiamentos indexados ao câmbio.
A combinação desses fatores, somada ao terrorismo econômico praticado no marco da disputa eleitoral, gerou um quadro crítico em 2002, com o risco Brasil superando a casa dos 2.400 pontos, a taxa de câmbio chegando perto de R$ 4 por dólar, os preços internos ameaçando disparar e a rolagem da dívida externa -inclusive a renovação das linhas de crédito comercial- caindo a níveis sem precedentes.
Naqueles momentos, em que se decidiam as eleições, a tese dos governistas era que Lula seria um misto de Chávez -de quem reproduziria o populismo voluntarista, mesmo sem o apoio militar e parlamentar do líder venezuelano- com De La Rúa, cuja incapacidade de governar levou a Argentina a uma das piores crises de sua história. A declaração do megainvestidor George Soros -"Serra ou o caos"-, expressão da aliança do candidato do governo com o capital financeiro especulativo, resumia, em seu simplismo, essa visão.
A resposta a essas profecias enviesadas foi demolidora. A transição negociada foi um exemplo de maturidade política e, ancorada na clareza e na transparência das atitudes e propostas programáticas do novo governo, permitiu reduzir as expectativas mais pessimistas e conter as manobras especulativas do mercado. A posse do presidente Lula foi um encontro jamais visto entre as ruas e o palácio, numa expressão jubilosa da vitória da esperança sobre o medo. O governo ampliou as alianças políticas e sua base de sustentação parlamentar, formou um ministério amplo e consistente, iniciou a implantação de um novo padrão de participação da sociedade civil com a montagem do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e realizou uma reunião com os governadores da qual, pela primeira vez, saem compromissos concretos. Todos esses aspectos foram fundamentais para assentar as bases da governabilidade e desfazer o quadro de desconfiança e deterioração da situação econômica gerado nos meses precedentes.
Derrotada a tese do catastrofismo, a crítica tucano-pefelista deu uma guinada: agora o governo Lula é acusado de continuísmo. Essa crítica, tão vazia e oportunista quanto a anterior, deixa de lado o fato de que, ao contrário do que ocorria no governo FHC, a atual política econômica não está orientada para consolidar a lógica do modelo econômico neoliberal, fundada no binômio déficit nas transações correntes do balanço de pagamentos/aumento cumulativo do passivo externo dolarizado, que levou à desnacionalização, à privatização e à fragilização da economia. A política de ajustes graduais -expressão da pequena margem de manobra do novo governo- objetiva criar as condições de retomada do crescimento econômico e mudança do modelo de desenvolvimento. Para isso, é essencial não somente superar a vulnerabilidade externa -recuperando de maneira sustentável o saldo da balança comercial e reduzindo o déficit nas transações correntes- mas também desenvolver novas frentes de ação na esfera real da economia.
Apesar do pouco tempo decorrido desde a posse do presidente Lula, passos concretos estão sendo dados nessa direção, paralelamente à normalização progressiva dos indicadores conjunturais -a estabilização da taxa de câmbio, a queda acentuada do risco Brasil, a reabertura das linhas de financiamento externo e a contenção da pressão inflacionária.
A ofensiva diplomática deflagrada nos últimos meses, além de revalorizar o papel e a imagem do país no cenário internacional, deu uma nova dimensão à política comercial brasileira, mais firme e aguerrida na defesa dos nossos interesses. O sistema de financiamento público, bastante fragilizado, está sendo reestruturado e as instituições de fomento -o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal- já iniciaram programas de investimento em diversos setores da economia. O governo está promovendo um amplo debate com a sociedade sobre as reformas tributária e previdenciária, que terão um papel importante na consolidação, a longo prazo, do equilíbrio das contas públicas e no estabelecimento de padrões mais adequados de justiça fiscal e social. Foi iniciada a reconstrução do sistema de planejamento estratégico, essencial para a orientação das ações públicas e privadas de desenvolvimento a médio e longo prazo, cuja primeira fase se materializará no Plano Plurianual (PPA), atualmente em elaboração. A recente renegociação das dívidas dos pequenos produtores rurais, produto de um amplo acordo no Senado, pela primeira vez colocada como prioridade na agenda do país, representará um forte impulso à produção e ao fortalecimento da agricultura familiar, beneficiando cerca de 320 mil famílias. O Fome Zero, apesar das dificuldades inerentes a sua complexa natureza, começa a estruturar-se como programa articulado de produção, distribuição e consumo de alimentos.
Essas ações e iniciativas sinalizam claramente a direção e as prioridades do processo de mudança. A opção por uma estratégia gradual não se confunde, nesse contexto, com o continuísmo. Somente reflete a decisão de, no marco das restrições estruturais existentes, avançar rumo ao futuro com os pés no chão, de maneira a minimizar os custos da transição para o novo padrão de desenvolvimento e a não frustrar as esperanças do povo brasileiro.


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo, secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores e líder do governo no Senado Federal e no Congresso.



Texto Anterior: Tendências internacionais: EUA fazem guerra com bomba, economia e infra-estrutura
Próximo Texto: Luís Nassif: O rei desconhecido do sincopado
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.