São Paulo, sexta-feira, 06 de dezembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

O dólar escasso e a língua solta

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

A batalha do dólar recomeçou! Apesar de uma queda importante na cotação da moeda americana ao longo de novembro, os sinais de que ainda vivemos uma crise de liquidez externa gravíssima são visíveis. A escassez de divisas externas é a grande marca dos tempos que estamos vivendo e a condicionante mais importante da evolução da conjuntura brasileira, às vésperas da posse do novo governo. Espero que o presidente Lula e sua equipe tenham aproveitado esses últimos dias de paz e amor para entender a natureza e a gravidade da crise em que estamos mergulhados. A partir de janeiro, o destino de todos nós vai depender disso.
Aproveito nosso encontro de hoje para atualizar o leitor da Folha em relação a essa batalha pela recuperação de nossa solvência externa e cujo resultado vai marcar o ano de 2003 no Brasil. Como um correspondente de guerra, procurarei descrever os espaços em que deverão acontecer os grandes combates e as condições dos exércitos neles envolvidos, seus planos estratégicos e a qualidade de seus Estados-Maiores e principais comandantes. A tarefa do jornalista que assume essa missão é facilitada, no caso brasileiro de hoje, pela riqueza das informações a que ele tem acesso. Ele pode realizar sua tarefa em casa, sem correr os riscos do passado.
As estatísticas sobre mortos e feridos e o movimento das tropas em luta estão disponíveis na internet e em outros sistemas de informações econômicas. Além disso, o Banco Central, que faz parte do Estado-Maior das forças governistas, informa periodicamente a posição e a força de seus exércitos. Do lado do inimigo, também podemos acessar diariamente os comentários de seus principais estrategistas sobre o andamento dos combates e os cenários previstos para os próximos meses.
As dificuldades dessa estranha guerra, que estamos vivendo desde fins do ano passado, agravaram-se a partir da eleição de um novo governo, que ocorreu em meio aos combates de outubro passado. Isso levou os dois lados, o que luta pela estabilização de nossa economia e aqueles que apostam em nosso colapso, a uma reavaliação de suas forças. As forças do mal, quando a vitória de Lula ficou clara, em junho passado, decidiram lançar um ataque frontal contra o real, levando nossa moeda a uma posição de fraqueza extrema. Nosso colapso parecia, então, questão de dias.
Entretanto, nesse momento, os que apostavam em nossa moratória externa foram surpreendidos pelas declarações do novo presidente e de seus principais auxiliares de que manteriam a estratégia de luta do governo anterior. Reafirmaram os compromissos com a estabilidade macroeconômica, e seus deputados e senadores no Congresso Nacional passaram a ter uma atuação totalmente diferente da de anos anteriores à vitória de Lula. Essas ações legislativas mais responsáveis do PT e as sucessivas declarações de extremo bom senso de alguns membros do Estado-Maior de Lula levaram até alguns combatentes a mudar de lado, internando dólares no país via mercado financeiro, para aproveitar os benefícios dos elevadíssimos níveis de juros internos: 30% ao ano para investimentos de curto prazo em dólares. Isso permitiu ao Banco Central parar de vender suas reservas para dar liquidez ao mercado de câmbio e rolar, para o ano que vem, parte importante dos pesados vencimentos de nossa dívida interna. Como decorrência, o risco Brasil caiu bastante nos mercados externos, e um certo otimismo com o futuro voltou para parte do mercado.
Quem comprova essas mudanças é o Banco Central em seu relatório sobre câmbio contratado, no mês de novembro. Houve uma queda importante do saldo negativo nas transações cambiais, que passou de US$ 3 bilhões, em outubro, para menos de US$ 500 milhões, em novembro. Além disso, esse déficit de divisas foi totalmente financiado por recursos dos bancos comerciais privados. As transferências internacionais de reais -as famosas CC-5- também foram menores em relação aos meses anteriores -US$ 1,7 bilhão em outubro, contra US$ 158 milhões em novembro-, mostrando de maneira clara essa trégua dos mercados. Com essa brisa de confiança, a cotação do dólar apresentou uma estabilidade relativa nos mercados financeiros nos últimos 30 dias, interrompendo a marcha contínua da alta dos últimos meses. Essas vitórias parciais, que foram recebidas com entusiasmo quase infantil pelos novos governantes do país, serviram para fortalecer a posição de Antônio Palocci Filho, a liderança mais expressiva do grupo de petistas que defendem uma política econômica ortodoxa para o próximo ano.
Mas a posição do ex-prefeito de Ribeirão Preto ainda é muito frágil, principalmente por ser ele um general-de-divisão improvisado, sem tropas e sem Estado-Maior. Médico sanitarista, usando até agora apenas seu bom senso e sua experiência como prefeito, sua posição começa a dar sinais de enfraquecimento. Como sempre acontece em política, seu crescimento em relação ao novo presidente está provocando reações de ciúmes entre as estrelas mais antigas do partido. Já passamos da fase das intrigas internas para a de agressões públicas. Sua derrota na tentativa de manter Armínio Fraga como presidente do Banco Central por um certo período e os problemas para encontrar um substituto que tenha a confiança dos mercados estão criando dificuldades para convencer os investidores externos a rolar suas posições para depois de dezembro. O dólar voltou a subir, levando consigo as expectativas de inflação e de um novo aumento dos juros.
O resultado dessa luta interna, idiota e fratricida, pode ser, no curto prazo, a perda de um volume importante de reservas na virada do ano, enfraquecendo ainda mais as forças do bem, nos campos de batalha. Iniciar um governo de quatro anos com US$ 13 bilhões livres no caixa e com uma grande desconfiança dos mercados pode ser um erro irreparável. Mas a ambiguidade parece ser a marca do governo Lula, e teremos que viver com ela. As dificuldades para passar de um discurso de oposição à FHC para uma estratégia de governo que tenha condições para enfrentar as terríveis dificuldades de hoje estão se mostrando quase incontornáveis a cada dia que passa.
O voluntarismo social e econômico, que caracterizou a campanha eleitoral de Lula, precisa ser imediatamente substituído por um plano de governo claro e que defina as ações de natureza tática e estratégica para os próximos anos. Isso não existe ainda e as novas dificuldades encontradas no campo financeiro mostram isso.
Encontrar um discurso coerente, definir uma ação administrativa clara e evitar uma luta de poder em seu círculo mais próximo é o grande desafio dos próximos dias para Lula. Se prevalecerem as divisões de sua equipe, que estão começando a vir a público, e não for encontrada uma solução eficiente para a diretoria do Banco Central, corremos o risco de uma nova onda especulativa contra nossa moeda.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 59, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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